O seminário Discriminação, integração: Brasil-França, experiências cruzadas, promovido na semana passada pela Fundação Perseu Abramo e pela Fondation Jean Jaurés (dias 19 e 20 de março), trouxe à tona uma questão óbvia, mas que historicamente é mantida em silêncio: o Brasil não é uma nação homogênea.

A construção da nação brasileira ocorreu sem grandes mudanças no trato dispensado aos indígenas e negros durante a fase colonial. Construíam povoados, cidades, riquezas e uma nacionalidade sobre a base das civilizações originárias, sem qualquer respeito a elas, utilizando para tal finalidade a mão-de-obra escrava, tanto indígena quanto a negra. Forjaram a criação de uma nação, cuja origem seria (se fosse verdade) a fusão de três culturas diferentes: indígenas, negros e brancos colonizadores.

A alegoria das três raças – termo utilizado pelo etno-historiador John Monteiro – é, definitivamente, uma abstração infundada e absolutamente racista praticada no Brasil. A propalada “democracia racial” oculta uma relação de poder na qual um grupo dominante quer impor uma cultura homogênea, mantendo a discriminação étnico-racial que recai, sobretudo, sobre negros e indígenas. Portanto, a alegoria das três raças escamoteia a prática de uma política genocida sistemática que tem resultado no extermínio de milhões de seres humanos – indígenas e negros, com o consentimento e a autorização do Estado.

O seminário sobre a discriminação avançou no debate para além da constatação da violência étnico-racial praticada historicamente, possibilitando a visualização do protagonismo histórico dos povos indígenas e negros no Brasil. Foram expostas claramente as estratégias e ações de resistência e a conquista de direitos e espaços políticos no interior da sociedade, ainda que a história oficial tenha concentrado esforços para ocultar as lutas de resistência. Neste sentido, uma das exigências é que a história oficial reconheça as lutas desses grupos sociais, valorizando as suas histórias e culturas na formação de uma nação culturalmente diversa, conforme a lei 11.645/08.

Depurando os escombros e entrelaçando o passado com o presente, numa perspectiva de futuro, os debates demonstraram que é possível e necessário levantar a cabeça para exigir que o Estado e a sociedade brasileira assumam moralmente todos os ônus da marginalização social à qual indígenas e negros foram submetidos historicamente, o que significa a tomada de políticas públicas de inclusão, de distribuição de renda, de democratização dos bens culturais, além da implementação de ações emergenciais como a aprovação da política de cotas que garantam o ingresso e a manutenção desses grupos nos níveis mais elevados de escolarização (graduação e pós-graduação).

Radicalizando as atitudes anti-racistas
Não é de estranhar que grupos conservadores e reacionários se manifestem contra as políticas democratizantes, principalmente contra as ações emergenciais de reparação, como a aprovação das cotas, por exemplo. Quem historicamente explorou e roubou a liberdade de negros e indígenas quer manter a dominação, ainda que tenha que mudar o discurso e as práticas racistas. Hoje muito se fala de tolerância e respeito à diferença, sem avaliar criticamente a atual composição sócio-econômica da sociedade brasileira.

Ora, quem já sofreu todo tipo de violência racista por mais de 500 anos, não pode esperar mais 500 anos para que se promova a justiça. Daí a necessidade das políticas emergenciais, que por mais que não seja a solução definitiva para a abolição da desigualdade social, pelo menos é o aceleramento do início de um processo que tende a ser muito lento. No entanto, ao invés de se acomodarem com as políticas emergenciais, os indígenas e negros devem e estão montando estratégias para ocupar postos de poder dentro da sociedade, formando outra hegemonia que garanta a dignidade e a definitiva liberdade em relação às senzalas e às missões.

A minha alma está armada
E apontada para a cara do sessego…
O debate em torno da questão ético-racial está aberto e é um processo irreversível que a sociedade brasileira terá que assumir.

Os velhos conservadores que controlam as instâncias de poder tendem a postergar o reconhecimento da diversidade cultural e de direitos para os povos indígenas e negros. Eles preferem criar exigências burocráticas, jurídicas e acadêmicas (justificativas teóricas), na esperança de emperrar o avanço das conquistas ou o reconhecimento de uma resistência organizada e efetiva.

Aqueles que outrora eram escravizados e violentados sem chance de defesa, hoje gritam em alta voz pelo rompimento das últimas correntes que ainda oprimem. Não é mais aceitável que dentro de uma sociedade em que “todos são livres”, ainda exista a discriminação pela cor da pele ou por outros traços físicos e culturais.

O seminário promovido pela Perseu Abramo possibilitou uma reflexão aprofundada sobre o tema em questão. Foi um momento privilegiado para questionar as posições conservadoras e demarcar campo no interior de um governo nacional que veio de dentro dos movimentos sociais.

O cenário nacional contra o racismo está montado e a luta toma outras formas, em que negros e indígenas se colocam como protagonistas fundamentais da história brasileira.

Pensando nos mais de 500 anos de opressão praticado contra indígenas e negros, nas chibatadas, nos assassinatos, estupros, trabalhos forçados e todo tipo de covardia praticada pelo colonizador, hoje pode-se visualizar uma sociedade mais democrática. No entanto, a democracia tem que ser radicalizada, caso contrário o brando discurso da tolerância pós-moderna pode vencer a real democratização.

A temática aqui discutida é um processo em andamento que implica a participação efetiva dos agentes interessados: negros e indígenas. Toda a polêmica em torno da questão pode ser compreendida parafraseando a poetisa Cecília Meirelles: liberdade é pouco, o que quero ainda não tem nome.

*Edson Brito é indígena da etnia Kayapó, doutorando do programa “Educação: história, política e sociedade”, da PUC-SP.

Saiba mais sobre o seminário “Discriminação, Integração”:

Seminário debate racismo e xenofobia no Brasil e na França

Seminário Discriminação, integração: As políticas de promoção da igualdade racial

Seminário Discriminação, Integração: Negritude na França e movimento negro no Brasil