Milk: inspiração para lutar, estímulo para pensar, por Julian Rodrigues
Quero começar falando de Sean Penn. Além de ser um dos melhores atores do cinema mundial, o cidadão Sean é um militante de esquerda, engajadíssimo, envolvido em diversas causas “do bem”. Foi uma pedra no sapato do governo Bush por sua oposição ferrenha à guerra do Iraque, por seu ativismo diário contra o fundamentalismo direitista dos republicanos. Sean Penn chegou a bancar, do seu próprio bolso, anúncios de página inteira em grandes jornais norte-americanos, denunciando as calamidades promovidas por Bush Jr.
Pois bem. Milk é um filme para interferir no debate público. Gus Van Sant, gay assumido, que já fez tantos grandes filmes, não podia escolher hora melhor para contar parte importante da história do movimento gay norte-americano, por meio do resgate da biografia de Harvey Milk, o primeiro militante assumido a se eleger para um cargo público nos EUA.
Os EUA e o mundo acabam de se livrar dos oito anos de trevas, elegendo Obama. Uma das diretrizes favoritas de George Walker Bush e sua tropa cristã medieval era construir uma verdadeira cruzada contra os direitos civis dos homossexuais. Não foi pequeno o retrocesso que promoveram nos últimos anos.
Surpreendentemente, em 2008, até a Califórnia, um dos locais mais progressistas dos EUA (berço do movimento gay), acabou de aprovar, por voto popular, a proposição 8, que revogou o reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo naquele estado. Um passo atrás, revogando uma conquista histórica.
Como isso pode ter acontecido? Afinal, falamos da mesma Califórnia de Hollywood, dos intelectuais, do cinema, dos artistas, hippies, imigrantes, gays – destino de muita gente rebelde nos anos 60-70, protagonistas daquele tempo de contestação. Tempos difíceis…
Lá e cá, passado e presente
O filme, neste contexto, acerta em cheio. Resgata o espírito libertário daquelas décadas nos EUA. Conta-nos que o moderno movimento gay surge naquele caldo efervescente: revolução sexual, luta pelos direitos civis dos negros, Woodstock, hippies, luta das mulheres, luta estudantil, oposição à guerra do Vietnã, queda de Nixon…
Harvey Milk foi assassinado quando fazia um belo trabalho como representante gay na Câmara de San Francisco. Mas, diferente de Martin Luther King, que teve tempo de ver os avanços de sua luta pela igualdade racial e se transformar em ícone (antes de também ter sua vida ceifada) – nosso líder gay apenas havia começado a brilhar. Não fossem aquelas balas, poderia ter sido um grande líder nacional nos EUA, vocalizando reivindicações homossexuais e fazendo avançar a causa da igualdade.
Fundamentalismo
O discurso fundamentalista anti-gay retratado no filme continua o mesmo. Lá, eles tinham, no fim dos 70, o senador Briggs e a garota-propaganda de suco, a repugnante religiosa Ana Bryght. É impressionante que a mesma baboseira preconceituosa continuou e continua sendo propagada por diversos políticos hoje em dia, e ganhou força no século 21, no governo republicano. Torcemos para que Barack Obama represente mesmo um tempo de mudanças.
Aqui, no Brasil, temos gente igualzinha. Os evangélicos que atacam os projetos de lei que garantem direitos à população LGBT falam as mesmíssimas coisas. Usam a bíblia – em rede nacional de TV ou em sessões parlamentares – para dizer que homossexuais são doentes, pecadores, anormais, gente esquisita. Igualam-nos a pedófilos, necrófilos, zoófilos, perversos, que querem “converter” crianças inocentes, etc. Temos aqui senadores obscurantistas, como Magno Malta, do ES, ou Marcelo Crivela, do RJ. Temos também inimigos de plantão como Rozangela Justino e Julio Severo, que dedicam sua vida a organizar o fundamentalismo militante anti-homossexual.
Ou seja, o filme nos lembra que, apesar de vários avanços, tantos anos depois, nos deparamos, trinta anos depois, com idéias excludentes e preconceituosas, que não aceitam o reconhecimento dos direitos civis de LGBT em nosso país.
Movimento brasileiro
Se um filme como Milk gera discussões em todo o mundo, seu impacto no movimento LGBT organizado e entre a “opinião pública” GLS é maior ainda.
Muitos têm, de forma saudosista, supervalorizado aquela época e os primórdios do movimento no Brasil, em maniqueísta oposição ao que existe hoje. Atitude saudosista e rigorosamente romântica, que desconsidera o quanto avançamos nas últimas três décadas e também as especificidades dos diferentes contextos históricos e geográficos.
Nos EUA dos anos 70, não havia uma ditadura militar, como no Brasil. E, apesar de tudo, hoje, três décadas depois , temos mais Paradas do Orgulho do que lá – e temos maior influência concreta junto ao Estado. Temos, além disso, mais aliados no parlamento e temos mais avanços em termos de políticas públicas.
Nos EUA de hoje, apesar da força do movimento gay, não existe uma política institucional do governo federal pró-LGBT. Uma Conferência Nacional como a que tivemos aqui, em junho de 2008, com a presença do Presidente da República em sua abertura está muito longe de acontecer na “América”.
Isso quer dizer que a organização de nosso movimento aqui e o “gay power” brasileiro é muito maior? Não. Apenas significa que comparações apressadas e suspiros nostálgicos são apenas isso – idealização do passado. Superficialidades que não dão conta de explicar as complexas diferenças políticas, sociais e culturais entre os dois países. Afinal, o ontem é sempre azul e os outros sempre parecem melhores do que nós. Sobretudo, mais politizados e organizados. Seria isso um resquício do passado colonial?
Milk e o movimento brasileiro
Impossível apontar, portanto, herdeiros nacionais de Milk e sua luta. Ou relações diretas entre aquele contexto e o nosso.
Para começar, Milk conseguiu juntar mobilização social ampla e articulação partidária e político-eleitoral já em meados dos anos 70. Coisa que o movimento brasileiro, até hoje, tem dificuldade em fazer.
Para usar comparações simplistas, como as que têm sido feitas por aí: se Milk fosse brasileiro, ele teria, em 1978, se apresentado como candidato a deputado estadual pelo MDB, costurando uma frente ampla com outros setores do movimento social. É só ler a história com cuidado. Milk articulava com sindicalistas (caminhoneiros), idosos, mulheres, movimentos comunitários, etc. Associava o discurso pelos direitos LGBT a outras lutas da sua cidade, do seu bairro – até a preocupação midiática em garantir uma cidade sem cocô de cachorro.
Resgatemos um dos debates fundamentais ocorridos no grupo SOMOS (pioneiro no Brasil) e que repercutem atualmente, de forma análoga, no movimento LGBT: “autonomistas” x “partidaristas” – “causa gay” acima de tudo x articulações com outras lutas sociais.
Ora, podemos observar que Milk representa o campo oposto ao dos que defendem a especificidade singular da nossa causa e o distanciamento da luta gay dos outros movimentos sociais. E, principalmente, é um líder político-partidário, que entende as complexas articulações entre movimento social, partido e parlamento (as cenas onde ele combina os papéis e falas que ia desempenhar como “supervisor” – e a postura mais radical que deveriam ser desempenhadas pelos ativistas que continuavam no movimento – são exemplarmente didáticas).
Milk não tinha dúvidas sobre a importância de ocupar espaços institucionais. Nem igualava grosseiramente, direita e esquerda – ele tinha lado, pois era do Partido Democrata e articulava, em seu interior, para ganhar espaço para os temas dos direitos dos homossexuais. Sua relação com o então presidente democrata Jimmy Carter é um exemplo de visão ampla e grande capacidade política.
Herdeiros de Milk?
Assim, por várias razões, é impossível apontar uma ou outra liderança, no Brasil, “herdeira” direta do pensamento e das práticas de Harvey Milk.
Se fosse para fazer essa comparação tosca, deveríamos pensar em quem, no Brasil do fim dos anos 1970 e nos anos 1980, construiu uma atuação mais institucional e dirigida também a pressionar o Estado, sem ingenuidades românticas, surtos personalistas ou aversão à política real.
Nessa linha de argumentação, olhando para o fim dos 70 e para a década de 80, James Green, João Antonio Mascarenhas e Luiz Mott – mesmo com com grandes diferenças, poderiam ser apontados como ativistas que encarnam alguns aspectos de um possível legado de Milk.
Eles, e não aqueles outros e outras que se negam, até hoje, a organizar coletivos, a ter posturas político-partidárias, a disputar eleições, a dialogar com parlamentos e governos, têm algum tipo de ligação com uma possível herança do líder norte-americano.
É preciso ressaltar também que, mesmo se Harvey Milk não tivesse sido assassinado, o movimento gay provavelmente recuaria, porque os EUA entraram em uma década reacionária, com a eleição de Reagan. Já, no Brasil, os anos 80 foram marcados pela queda da ditadura e pela ascensão dos movimentos sociais. Ocorre que, lá e cá, o surgimento da epidemia da AIDS e a devastação que a doença provocou mudaram totalmente o que poderia ser a evolução “natural” do movimento LGBT.
Voltemos ao Brasil. Em termos mais atuais, se considerarmos as relações entre partidos, movimento e candidaturas gays, e se pensarmos nas experiências dos anos 90, todos e todas que construíram candidaturas e se submeteram ao crivo do voto popular, têm muito mais proximidade com a história mostrada no filme do que os “anti-partidaristas”, pseudo-independentes. Destaco aqui, entre muitas outras, a votação obtida por Beto de Jesus, ex-presidente da Parada de Sampa, em 2002, quando foi candidato deputado federal em São Paulo. Mesmo com pouca estrutura, sua votação foi, em termos absolutos, a maior que um ativista LGBT obteve até hoje.
E, claramente, o espaço partidário em que a questão homossexual sempre obteve destaque foi no interior do PT, desde sua fundação. A criação e fortalecimento do seu setorial LGBT nos anos 90, guardam alguma relação com a inserção institucional do movimento em San Francisco, por meio de Milk e seus apoiadores no Partido Democrata.
Questões e reflexões
A história de Milk e do movimento LGBT dos EUA nos anos 70 nos fornecem muitos temas para debate e reflexão coletiva.
Algumas questões para pensar:
– o movimento nacional conseguiu realizar imensas Paradas do Orgulho, mas não logrou construir uma rede de apoio e mobilização no interior de nossa comunidade, que nos permita ir às ruas, com número significativo de pessoas, em outros momentos significativos (protestos contra crimes de ódio ou a favor de leis, por exemplo). Que estratégias devem ser adotadas para aumentar a relação orgânica com a “base” do movimento LGBT organizado?
– é possível reproduzir, em todo o país, aquele tipo de organização que havia em San Francisco e na Califórnia naquela época? Qual o papel do “gueto” na estruturação da luta pelos direitos LGBT?
– como construir candidaturas de lideranças LGBT que sejam competitivas de fato e tenham uma estratégia de longo prazo, baseadas na idéia de acúmulo de forças? Constatemos: a maioria de nossas lideranças se candidata apenas uma vez e não constroem processos contínuos – Millk se elegeu em 78, mas foi candidato pela primeira vez em 73!
– qual a relação dos partidos com o movimento? Como manter a autonomia da luta LGBT e, simultaneamente, garantir os espaços de discussão e representação no interior dos partidos progressistas? Ou mesmo, hoje, no interior dos partidos de direita? Que caminho é o melhor para preservar a unidade na diversidade, articulando a plataforma pelos direitos de nossa população com outras lutas, sobretudo com a luta das mulheres, do movimento negro, estudantil, sindical e popular?
Enfim, há muito que refletir a partir do filme, um grande estímulo para avançar.
Saudemos, novamente, Gus Van Sant e Sean Penn. Eles provam que o cinema (e a arte) pode, ainda hoje, ser significativo e relevante, mirando num outro mundo possível – ajudando no reinventar cotidiano da vida.
*Julian Rodrigues é ativista gay, do Instituto Edson Neris (SP), do Fórum Paulista LGBT e da ABGLT. É também da coordenação do setorial nacional LGBT do PT.
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