A tumba está em festa, Valter Pomar
Antes de falar da vitória de Maurício Funes e da FMLN, é preciso falar da Aliança Republicana Nacionalista, a Arena.
Fundada em 30 de setembro de 1981, Arena é um partido assumida e doutrinariamente de direita, que tem entre seus princípios a luta contra a “penetração ideológica e a agressão permanente do comunismo internacional”.
Arena venceu as eleições presidenciais de março de 1989 e desde então governa El Salvador. Seu candidato às eleições de 15 de março de 2009 era o engenheiro Rodrigo Ávila, ex-chefe da Polícia Nacional Civil, graduado na Academia do FBI e consultor internacional em “segurança pública”.
Arena vive e pensa com parâmetros da Guerra Fria, a tal ponto que tem um vice-presidente encarregado de “assuntos ideológicos” e um hino que proclama: “pátria si, comunismo no”. E para que não restem dúvidas sobre os métodos, lá também se diz que “El Salvador será la tumba donde los rojos terminarán”.
Desde 1994, Arena vem disputando as eleições presidenciais contra a Frente Farabundo Martí pela Libertação Nacional, guerrilha que se converteu em partido político após os Acordos de Paz firmados em 1992.
O desempenho da FMLN nas eleições presidenciais foi crescente: em 1994, Ruben Zamora chegou a 26% dos votos; em 1999, Facundo Guardado obteve 29% dos votos; em 2004 Schafk Handal obteve 35% dos votos. Ao mesmo tempo, manteve uma intensa vida partidária, forte atuação parlamentar e nas lutas sociais, bem como sua atividade internacionalista.
Para as eleições de 2009, a FMLN fez um movimento extremamente ousado: decidiu lançar a candidatura de Maurício Funes, conhecido jornalista da CNN. Este gesto, seguido por outros, no terreno programático e na condução da campanha, ajudou a FMLN a ganhar o apoio de setores de centro, inclusive empresários.
Noutro cenário, esta flexibilidade talvez não resultasse na vitória. Mas no ano de 2009, a conjuntura não favorecia a direita. A administração Obama disse formalmente que governaria com quem vencesse as eleições, não repetindo a ingerência aberta e declarada praticada nas disputas anteriores. A crise econômica internacional e a onda de vitórias eleitorais da esquerda latino-americana também enfraqueceram a candidatura da Arena.
Esta conjuntura foi essencial para a derrota da direita, apesar da fortuna gasta nas eleições, apesar da campanha suja (implementada por gente ligada à direita mexicana e chilena) e apesar das fraudes cometidas no processo eleitoral.
Todas as pesquisas eleitorais, desde o início da campanha, indicavam a vitória de Funes. As duas pesquisas de boca-de-urna apontavam uma vantagem pró-FMLN que podia chegar a 8 pontos percentuais. Ao final, a esquerda venceu com 51,2% dos votos ou 68 mil votos de vantagem (de um total de 2.630.137 votantes, 1.349.142 votaram na FMLN e 1.280.995 votaram na Arena).
A diferença não foi maior por vários motivos, entre os quais a fraude, facilitada pelas características peculiares do processo eleitoral salvadorenho. O “padrão eleitoral” é composto por todos os salvadorenhos que tenham o documento unificado de identificação (a nossa carteira de identidade). Neste universo, havia comprovadamente um grande número de documentos falsos, duplicados, de pessoas que já haviam morrido, de pessoas sem domicílio conhecido, de pessoas que residem no exterior. Em segundo lugar, a votação não é feita por local de residência, mas sim por ordem alfabética (no caso, a primeira letra do sobrenome paterno), obrigando deslocamentos da população, num país onde não há transporte público e onde o voto não é obrigatório. Em terceiro lugar, a direita arregimentou eleitores em países vizinhos, a quem foram entregues documentos falsos ou de pessoas ausentes do país. Em quarto lugar, o Tribunal Supremo eleitoral é controlado pela Arena, que indicou 3 de seus 5 integrantes, inclusive o presidente.
Encerrada a votação, a direita demorou algumas horas para reconhecer a derrota. Ao faze-lo, pediu “prudência” e “sabedoria” para a esquerda, alertando que o país estava “dividido ao meio”. Esqueceram de dizer que a polarização foi a tônica da campanha da Arena, que “acusava” Funes de “comunista” e de “chavista”.
Funes não é uma coisa, nem outra. Em seu discurso de campanha, na coletiva em que proclamou a vitória e no pronunciamento que fez na festa popular da vitória, deixou claro que fará um governo de esquerda, mas adequado às condições econômicas e políticas de El Salvador. Nas várias entrevistas concedidas depois da eleição, ele também repeliu com muita tranqüilidade as seguidas tentativas de colocá-lo em conflito com a FMLN.
Como sabemos por experiência própria, os maiores desafios começam agora, especialmente a partir da posse, no dia 1 de junho de 2009. Mas uma coisa é certa: a tumba dos vermelhos, onde estão milhares de salvadorenhos e combatentes internacionalistas que deram sua vida na luta pelo socialismo em El Salvador, está em festa. Merecida festa.
*Valter Pomar é secretário de relações internacionais do PT