Uma prática distorcida e apressada, por Venício A. de Lima
Algo de muito estranho está ocorrendo com a grande mídia brasileira. Que boa parte de seus “formadores de opinião” insista em defender que o papel institucional da mídia é combater o poder – identificando como poder apenas aquele exercido pelos governos e deixando de lado o imenso poder exercido pela iniciativa privada e seu imbricamento com o próprio aparelho de Estado – pode ser debitado a posições e idiossincrasias pessoais. Que, no entanto, a mídia incorra, homogênea e reiteradamente, no mesmo tipo de prática jornalística – distorcida e/ou apressada – já é outra questão.
Essa prática não constitui novidade. Em alguns casos, no entanto, é de tal forma evidente que permite apenas uma conclusão: a grande mídia convenceu-se de que está totalmente deslocada e assumiu que fala apenas para um segmento minoritário da população brasileira, o seu “nicho de mercado”. E fala exatamente aquilo que essa minoria quer ouvir/ler. E, por isso, abandonou de vez qualquer compromisso com os ideais de “bom jornalismo” que proclama como seus – isto é, o profissionalismo, a imparcialidade e o equilíbrio nas informações que divulga.
Essas observações vêm a propósito de dois episódios, totalmente distintos, cujas coberturas jornalísticas dominaram a agenda da grande mídia na semana que passou: o Encontro Nacional com Novos Prefeitos e Prefeitas, promovido pela Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, realizado em Brasília; e o suposto ataque de membros de um partido neonazista a uma brasileira, na Suíça.
Foco no batom
O Encontro Nacional com Novos Prefeitos e Prefeitas foi organizado pelo Comitê de Articulação Federativa (CAF) com a participação e o apoio das três entidades nacionais municipalistas – Associação Brasileira de Municípios (ABM), Confederação Nacional de Municípios (CNM) e Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Estiveram presentes cerca de 4.000 prefeitos dos mais de 5.000 municípios brasileiros. Prefeitos e prefeitas democraticamente eleitos em outubro e pertencentes às mais diversas agremiações políticas em funcionamento no país. Não foi, nem poderia ser, um encontro partidário, obviamente.
Segundo a página oficial, o objetivo do Encontro era “estimular a qualificação da gestão, mediante a institucionalização de uma transição governamental democrática e republicana no âmbito municipal, e apoiar os novos gestores municipais no exercício de seu mandato”. Foram debatidas questões vitais para os municípios ligadas a educação, saúde, habitação, saneamento, agenda social e ações de governo para o desenvolvimento.
Qual foi a ênfase dada na cobertura do Encontro oferecida pela grande mídia? O “pacote de bondades” do governo federal com objetivo eleitoreiro; o erro em relação ao número de analfabetos em São Paulo cometido pelo presidente da República, sua crítica à cobertura prévia que a imprensa havia dado ao evento; a apagada participação da primeira-dama e o batom da ministra Dilma.
Crise de credibilidade
Quanto ao suposto ataque racista e xenófobo à advogada brasileira em Zurique, como já se disse no Observatório da Imprensa (1), o noticiário não se iniciou em Zurique, local da agressão, mas no Brasil, pela denúncia do pai da suposta vítima. Só que não houve qualquer checagem da informação antes que ela fosse levada ao ar pela principal rede de televisão do país e repercutida uniformemente pela totalidade da grande mídia.
Não se enviou um repórter a Zurique; não se ouviram as partes envolvidas: o policial responsável pela ocorrência ou a própria vítima; e nem se ouviu um especialista no tipo de ferimento sofrido pela brasileira. Tudo foi feito apressadamente, apenas com base no relato “comprometido” do próprio pai.
Apesar do inconformismo reiterado de muitos “formadores de opinião”, parcela importante da população tem revelado cada vez maior independência em relação ao “enquadramento” homogêneo e dominante na grande mídia. Em período de profundas transformações na forma como as pessoas buscam e recebem informações, o maior patrimônio dos empresários que operam no mercado de notícias é, sem dúvida, sua credibilidade. O “jornalismo declaratório” e fácil que caracteriza coberturas como aquelas oferecidas na semana que passou só aumenta a crise de credibilidade que vem se alastrando em relação à imparcialidade, ao equilíbrio e ao profissionalismo da grande mídia. E aumenta ainda mais o abismo que já existe entre ela e a maioria dos brasileiros.
*Venício A. de Lima é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006, publicado pela EFPA.
Nota
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