A constatação é de Nilmário Miranda, ex-secretário especial de Direitos Humanos. Nesta entrevista, o recém-empossado presidente da Fundação Perseu Abramo, analisa temas que estão na ordem do dia, como tortura, anistia, a sucessão em Minas e a presidencial.

Apesar do retrocesso dos direitos humanos no plano internacional, patrocinado pela era Bush, no Brasil, essa questão avançou principalmente no período Lula. A constatação é de Nilmário Miranda, ex-secretário especial de Direitos Humanos (SEDH) do governo do PT, recentemente, empossado presidente da Fundação Perseu Abramo, um dos principais órgãos de estudos do Partido dos Trabalhadores.

Nesta entrevista, Nilmário, uma das principais vozes a exigir a abertura dos arquivos da repressão e esclarecimentos sobre os fatos ocorridos durante a ditadura militar, discute a Lei da Anistia e a dificuldade do país em lidar com a memória e verdade históricas. Também avalia, com sua experiência na SEDH, a ampliação dos direitos humanos na percepção da sociedade brasileira, como um conjunto de valores. Sobre os desafios, é categórico: a tortura tem que ser combatida nos quadros policiais.

Na direção da Fundação Perseu Abramo, Nilmário prevê mudanças e entre as tarefas, aponta a aproximação entre a entidade e o PT na construção de uma agenda conjunta. Também sinaliza novos livros, um sobre a crise, “ABC da Crise”, elaborado juntamente com a CUT e o PT; outro, “Lula, Retrato do Brasil”, uma reedição da biografia do presidente da República escrita por Denise Paraná, agora em formato popular; e também uma grande avaliação sobre o Brasil hoje.

Quanto à sucessão presidencial em 2010, Nilmário que também foi deputado estadual em Minas Gerais e deputado federal duas vezes pelo Partido dos Trabalhadores (PT), analisa a conjuntura política mineira e uma política transparente de alianças.

Zé Dirceu – Acabamos de comemorar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Qual o seu balanço sobre os direitos humanos no Brasil e das ações do Governo Lula para essa área?
Nilmário Miranda – No período Bush, nós vivemos um retrocesso em direitos humanos (DH) no mundo. A chamada década de ouro foi de um pouco antes de 1989 até meados de 2002, quando tivemos muitos avanços no Brasil e no mundo nesse sentido. Com a eleição de George W. Bush, sobretudo, com a Guerra do Iraque, houve o retrocesso, por vários motivos – o enfraquecimento da ONU e do Tribunal Penal Internacional, do multilateralismo, a desmoralização internacional, a liberação da tortura, o terrorismo que influenciou outros Estados a fazerem a mesma coisa. Guantánamo (Cuba), Abu-Ghraib (Iraque), os prisioneiros em segredo nas bases da Otan e da Europa.

Tudo isso criou um clima diverso e num país (EUA) que sempre disse defender os DH. E os Estados Unidos foram apoiados na invasão do Iraque por países com história em DH, como a Inglaterra, a Espanha e a Itália. Mundialmente, isso provocou uma desvalorização dos DH. No Brasil não. Nós mantivemos uma postura, junto com o grupo latino-americano e caribenho, de condenar a guerra e a invasão do Iraque, de manter nossas posições, mantivemos o apoio ao Tribunal Penal e seguimos essa linha.

Aqui no Brasil, o que teve de diferente em relação ao passado foi a reunião dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esse é um programa que vem desde o início da adoção das políticas de DH. Quando existiu o bloco soviético, eram os direitos igualitários versus direitos democráticos e políticos. Eles se excluíam. O bloco capitalista, norte-americano, apoiava os direitos civis políticos e não ratificavam os direitos sociais e culturais. Essa esquizofrenia chega à famosa Conferência de Viena dos Direitos Universais, em 1993, quando decidiram juntar tudo novamente. Mas isso ficou só no papel.

O governo Lula deu uma guinada e fortaleceu os direitos humanos e sociais, econômicos e culturais. Direitos econômicos pela valorização do trabalho decente e também do próprio trabalho em si, historicamente depreciado no Brasil. Convivemos com a desvalorização da mulher, do negro, do indígena e do trabalhador rural e também do operário. O salário mínimo sempre foi considerado uma questão menor. Mas o governo Lula deu uma virada nisso ao formalizar o trabalho, combater o trabalho escravo, o infantil, o degradante. Isso explica, em parte, o sucesso do governo. E também programas como o Bolsa Família. Tudo somado gerou uma valorização do mundo do trabalho que está ligada aos DH.

Ainda sobre os direitos econômicos, a questão da habitação popular que está avançando. Espero que cresça muito mais, agora como uma alternativa para sairmos da crise. Também o direito à alimentação adequada que faz parte dos DH. Os direitos sociais que também valorizamos muito, como a recusa pela Previdência daquela idéia de privatizá-la. O Chile está pagando um preço caríssimo por tê-la privatizado.

A Argentina teve que reestatizar, perdeu 40% do valor cada aposentadoria na hora.

Aqui, se não fosse a esquerda, o PT e a CUT, teria sido muito pior. A Previdência está sendo recuperada e a formalização do trabalho faz parte da sua solução. Na área de saúde também, aquela idéia privatizante que entrou na saúde pública ganhou outro contorno. É a assistência social cidadã como direito, que nós desenvolvemos, desvinculando o clientelismo.

Nos direitos culturais, tivemos o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB). Do ponto de vista dos DH na Constituição, nós valorizamos o ensino fundamental de 7 a 14. No governo Lula, com o FUNDEB, você atende dos 4 aos 17 anos. Essa é uma mudança significativa, que tem impacto na questão igualitária muito grande e no futuro do país. Revalorizar o ensino médio, o ensino profissional, abrir de novo espaço nas universidades, seja com o ProUni, seja com a expansão da universidade pública.

Nós também avançamos muito no campo dos direitos econômicos e culturais, e na luta contra a discriminação. Ao criarmos uma secretaria com status de Ministério das Mulheres, de Combate ao Racismo, o presidente Lula deu outro rumo às questões sobre discriminação no Brasil. Avalio que houve, portanto, um bom desenvolvimento durante o governo Lula.

Evidente que em outros setores, nós avançamos pouco. A questão da abertura dos arquivos da repressão, da ditadura militar – não é que dependia da decisão do governo – concretamente não avançou. Hoje, pela contabilidade oficial são 163 desaparecidos. Destes, nesse último levantamento, apenas 3 foram identificados até agora. É muito pouco. Já se passaram 17 anos e não há um caso em que conseguimos desvendar o que aconteceu e tirar da condição do desaparecimento.

Sobre a questão dos arquivos, por que no Brasil nós avançamos mais lentamente do que nos outros países como Chile, Argentina, Paraguai?

A ditadura no Brasil foi diferente da de outros países. A matriz argentina foi fascista, eles (a ditadura) tiveram que reorganizar as instituições, desmanchar tudo para fazer de novo. E achavam que se eliminassem tantas mil pessoas, fariam uma ruptura com o passado. O Chile de alguma maneira fez isso, de outro modo. O Brasil manteve, ainda que totalmente castrado o Congresso, o Judiciário, teve um simulacro de isolamento na separação dos poderes. Optaram por outro caminho, que teve conseqüência.

Isso também tem uma causa histórica, a dificuldade do Brasil de lidar com seu passado e sua memória. O Rui Barbosa, no momento da Abolição, mandou queimar todos os arquivos da escravidão para apagar a mancha. Eram 13 milhões de brasileiros, destes, 8 milhões eram negros e pardos. Ele apagou a história da maioria do povo brasileiro da época. O discurso era apagar a mancha, a vergonha. Apagou a memória. Então, existe essa questão no Brasil de termos dificuldade em lidar com a memória e a verdade histórica.

E também a questão do nosso momento neoliberal, nos últimos 30 anos. É o chamado presente contínuo, não tem passado, só presente. O que acontece hoje, daqui a dez anos, ninguém vai saber o que aconteceu. Sempre só o presente.

O que é uma ilusão, porque estaremos marcados pela guerra do Iraque, pelo 11 de Setembro, pela América do Sul e as mudanças que vêm sendo feitas e, agora, pela crise.
Pega o nazismo. Ninguém associa um alemão hoje ao nazismo, associa-se à democracia. Por quê? Eles estudaram o nazismo, os livros de escola contam as histórias, eles preservaram os monumentos de terror do Estado, campos de concentração, fizeram memoriais, museus. Para se libertarem da história eles foram a fundo. Essa relação entre memória e verdade é fundamental, e o Brasil não tem isso. Aqui esse esforço parece um crime, uma provocação se falar sobre a ditadura.

Recentemente a Marinha se recusou a ir, a mandar representante à inauguração do monumento ao marinheiro João Cândido. Um século depois, veja o escândalo que fizeram, que ainda fazem, sobre a Revolta da Chibata. Dizer que a revolta foi infame? Só no Forte eles (militares) mataram 17. Os caras estavam marchando de peito aberto para se entregar e veio a ordem para matá-los. Mandaram matar dizendo que eles atacariam outra guarnição.
Há um livro da Fundação Perseu Abramo (FPA) chamado Cenas da Abolição, que conta os debates no Parlamento que antecederam a abolição. As pessoas estavam indignadas porque haviam comprado os escravos e não iam receber nada. O Estado iria indenizar os donos de escravos e não os próprios escravos. Foi isso que travou a abolição durante tanto tempo, porque eles não chegavam a um acordo se deveriam ser indenizados ou não. Eles compraram como uma mercadoria.

Então há essa dificuldade histórica no Brasil, agravada pelo fato de como foi realizada a transição democrática e as diferenças efetivas do país. Mas, acredito que o debate está posto novamente. A questão da tortura não tem como escapar.

Na questão da anistia é muito importante o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Se o STF se manifestar a favor ou disser o contrário – ao pedido da OAB sobre o alcance da Lei da Anistia, se beneficia também torturadores – está encerrado o percurso no país e a questão vai para a esfera internacional. E com certeza o Brasil será vulnerável.


Trazendo essa questão do universo da população para cá, há duas questões. A primeira é a idéia de que DH é coisa de bandido; a segunda é o problema da tortura nas delegacias – no processo de interrogatório nas polícias civis e militares – e a situação do nosso problema carcerário que é grave em DH. Também a questão da falta de trabalho e educação, as condições degradantes que vem se agravando, apesar dos investimentos que São Paulo fez no sistema penitenciário, temos que reconhecer isso. Como você vê essas questões?

A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República fez uma pesquisa surpreendente, mostrando que já é maior o número de pessoas que condenam a pena de morte do que o número das que a apóiam. O mesmo acontece em relação à tortura e à prisão perpétua. Tem indicadores interessantes quanto a isso. Claro, quando acontece um crime pavoroso, sobretudo feito por um adolescente, envolve a imprensa e esta trata de uma forma pouco crítica, aí, num curto prazo esse sentimento muda.

Mas uma pesquisa mais complexa, que pega as várias nuances de como as pessoas pensam, mostra um quadro bem mais favorável na área de DH do que há dez anos, por exemplo. Já houve uma evolução concreta na percepção sobre o que são Direitos Humanos. Hoje, DH também estão relacionados à velhice, proteção à criança, direito às mulheres, combate ao racismo. Quanto se trata da polícia a percepção é mais difícil, mas as pessoas já estão espontaneamente relacionando direitos humanos com a plenitude dos direitos, nesse ponto houve avanços importantes.

O problema continua sendo, no meu entendimento, o nível escolar e o currículo. O ensino básico é um fator de atraso, na medida em que a gente não conta a história, não vê a verdade e a memória. Assim, não se cria a consciência e permanece esse problema. Mas nas universidades já existem redes de cursos de Direitos Humanos, também bastante acentuados na educação chamada não formal. Há um esforço nos operadores da Justiça e da segurança para a mudança da cultura e da mentalidade. Agora, não é fácil. Você não pode dissolver a polícia e fazer tudo de novo. Num país com o nível de contradição como o nosso, você não pode viver um minuto sem polícia. Sem polícia, descontrola tudo.

Você investe na formação das novas relações dos quadros policiais, mas quando eles chegam na corporação encontram um choque entre o aprenderam e a prática. As Academias estão sendo muito boas em vários lugares. Mudaram os cursos, polícia civil e militar. E, por incrível que pareça, a militar avançou muito mais do que a civil. Você já tem em vários estados, inclusive, São Paulo, gerações de policiais formados em serviços de investigação e não de tortura, inclusive, eles desqualificam a tortura como método investigativo. Está havendo essa mudança.

Quem resiste mais às mudanças?
O Judiciário, o poder mais conservador. É assim em todos os países e em todas as transições. Mas as mudanças estão ocorrendo. O Judiciário era um grupinho, hoje é uma vasta rede nacional. O Ministério Público mudou muito, com todos os seus vícios, mas como instituição é uma enorme conquista do Estado Democrático de Direito nesse país.

A Polícia Federal (PF) – uma das melhores hoje do continente – mostrou que dentro dos seus quadros não há mais tortura. Eu me lembro de dois casos de tortura na PF nos últimos 15 anos, que ficaram conhecidos. O caso do Ceará em 1995 e no Rio em 2002. Eles acabaram com as carceragens praticamente em todo o país. Não tem mais oportunidades para haver tortura. Não há mais casos de execução na PF. Ou seja, foi uma polícia que desvinculou a atividade policial da execução e da tortura.

O problema das outras polícias pertence aos Estados, porque segurança pública é tarefa do governo estadual. Daí essa desigualdade de ritmos. A polícia da União é só em circunstâncias medidas pela lei. Os direitos são criados, as políticas públicas estão em execução. O que você tem que fazer? Desenvolver indicadores para fazer a avaliação, monitorar e dar respostas aos momentos novos que estamos vivendo no país. Nesse sentido, houve um avanço em relação à própria tortura, mas isso depende de um pacto. O governador “eu faço aquilo”, o Judiciário…

É difícil um juiz abrir um processo de tortura. Quando um preso denuncia esta violência, a atitude comum do juiz é negar a tortura ou ignorar a denúncia feita. Ele deveria abrir um procedimento próprio. Digamos, se tiver fonte de verdade, quando houver verossimilhança, tem que abrir um procedimento. Claro que muitos podem usar a tortura para se desvencilhar, mas tem hora que a coisa é feia. Eu escrevi um livro onde relato casos aberrantes de torturas ignoradas. O cara simplesmente… E mostra-se que realmente houve, confissões e provas. Então, falta muito ainda. Mas é um processo diferente de 10 anos atrás.

Vamos lembrar 1997, quando nos votamos a ratificação da opinião da tortura de abril de 1977. Houve 70 votos contra com a justificativa de que bastava cumprir a Constituição, o inciso 41 da Lei. A tortura é crime, a lei regulamentará. Regulamentamos a lei e houve 70 votos contrários, que eram contra criminalizar a tortura.

Manteve como método de investigação.

Manteve como método. Lembra o Almino Affonso defendendo a criminalização da tortura, em plenário? Nós ouvíamos “vocês vão acabar com a polícia, vão arrebentar as polícias”.

Quanto ao sistema penitenciário, ele também é estadual. O governo federal está promovendo uma iniciativa de outro tipo de presídio federal. Outro tipo de formação dos agentes, que impeça a fuga, proíba o uso dos celulares, e que impeça o crime de sair de dentro das prisões para fora. Aos criminosos que não tem jeito mesmo, tratar dignamente, mas que permaneçam confinados em segurança máxima.

No Brasil existem milhares de presos com pena vencida. Milhares de presos que não precisariam estar privados da liberdade. Há dez anos, eu fui à Argentina ver o sistema das tornozeleiras eletrônicas, chips para manter os detentos. Fui e não teve a menor repercussão, tentei falar, fiz audiências públicas e nada. Agora, alguns estados começaram a fazer experiência com isso.

A cultura de prender, de encarcerar é muito forte no Brasil. Ela não precisaria ser aplicada em determinado tipo de crimes não agressivos, diferentemente dos crimes contra pessoas, contra a vida. Separá-los dos crimes contra o patrimônio. No Brasil, por herança histórica, o crime contra o patrimônio é severamente reprimido. Agora, o crime contra a mulheres, por exemplo, não é punido da mesma forma. Há uma cultura aqui. A sociedade exige, existe um clamor para prender o ladrão por furto, o adolescente. Isso incomoda a sociedade que não sabe como conviver e lidar com isso.

Mudando de assunto, apesar da crise ser a agenda mais importante do país e do partido, do PT, como você está vendo a construção da candidatura do PT para 2010?
Sou simpático à candidatura Dilma. Acredito que ela possa realmente se viabilizar. Depende do tratamento da crise. O Brasil tem dois desafios: manter o nível de vida e o poder aquisitivo que foi a grande conquista do governo Lula, a grande mudança que ocorreu no país. Por exemplo, empregos. Mesmo com a dificuldade que haverá na indústria, você pode manter empregos em setores como a construção civil, a agricultura. O grande projeto de habitação popular cumpre a função social, ética, moral, política e econômica. Setores que são multiplicadores e avançam o nosso modelo sócio-desenvolvimentista. É o que temos que fazer. Se mantivermos isso e atravessarmos a crise, nós vamos virar uma referência. É uma luta ideológica feroz. Os neoliberais, as pessoas que privatizaram o Estado, produziram a miséria e aguçaram as contradições sociais, e agora querem dar as mesmas receitas com outro nome: reduzir custeio, PIB fiscal assim e assado. Reduzir custeio diminui os gastos sociais, o Lula provou isso.

É, porque custeio é Educação, Saúde, Justiça, gasto social.
Gasto social. A novidade é boa. É essa a novidade da América Latina. Tem que manter os gastos sociais, até ampliar. Eventualmente, reduzir o superávit. Utilizar novos instrumentos cada vez mais. Passar imune à crise é impossível, mas o modo como sair dela é o que vai determinar.

Dilma e Serra. Será um bom embate. Porque o Serra teoricamente falando é desenvolvimento, desenvolvimentista. Ele sempre defendeu isso, apesar de que na prática, foi líder do PSDB, apoiou a privatização, as políticas fiscais anti-desenvolvimentistas dessa gente aí de 1994 para cá. Mas será um bom debate. Eles vão debater: o desenvolvimento para quem?

Nós apontamos que o desenvolvimento tem que fortalecer o mundo do trabalho, a agricultura familiar, tem que incluir a renda, riqueza, poder, conhecimento e saber. Incorporar com essa linha a gente pode ganhar, mas depende muito do debate e da gente não ignorar que o momento para derrubar o paradigma neoliberal é agora. Saber fazer o embate aí, digamos do colapso do neoliberalismo.

Não estou discutindo a crise final do capitalismo, nada disso. O colapso do neoliberalismo, as idéias que predominaram nas últimas décadas, e não são só econômicas, elas predominaram no campo da política, do Estado, da cultura, da educação, da saúde, dos direitos humanos, em todos os campos. Direitos humanos não são só os direitos civis e políticos, mas a totalidade dos direitos. Temos que fazer esse embate. A timidez nos levaria a perder.

É o segundo turno da eleição do Lula em 2006. No momento em que Lula enfrentou o debate das privatizações com Alckmin, Lula avançou. E não fez à base verborrágica, mas de uma forma que o povo todo conseguiu acompanhar. A memória do neoliberalismo presente na América Latina é muito forte. Não podemos deixar isso diluir, temos que cobrar o preço desses que agora querem ensinar. Como dizem, “todo mundo agora é keynesiano”, parece que ninguém foi neoliberal até ontem. E defenderam o oposto do que defendem hoje. O que nos levou a essa situação. O Brasil só não foi mais neoliberal porque houve uma resistência aqui e a vitória do Lula.

Primeiro os militares na década de 70, não quiseram aceitar. O Geisel não aceitou fez o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), implantou a indústria de base e consolidou a petroquímica em plena crise do petróleo.
Ali o papel do Estado ficou patente.

E sobre Minas Gerais, que na minha opinião é a chave de novo para a sucessão? Se o Serra não entrar em Minas, ele não ganha a eleição. Nós temos o caso de São Paulo, que não é fácil para nós, mas temos condições de trabalho, que já mostramos em 2002 e 2006. Mas sem Minas e Rio, que são importantes ele não ganha. E também há o fato importante de quem será o candidato a governador do Estado e como o PT irá construir a sucessão em Minas na disputa com o Aécio do PSDB, e quem vai governar o Estado. Como você está vendo essa questão, levando em consideração que estamos saindo de uma crise do partido, com a aliança entre PT e PSDB na prática, que levou à eleição do Máarcio Lacerda para prefeito de BH. Como você está vendo o quadro de Minas?
Em 2006, nós fizemos aquela aliança com o PMDB que gerou muita polêmica também, mas Minas foi o único Estado do Centro Sul onde ganhamos governo e prefeitura. E quando Lula decidiu trazer o PMDB, Minas veio em peso. Pesou na decisão de compor o governo, isso tinha sido construído antes. Temos que tomar cuidado com Minas. Na crise do ano passado, em Belo Horizonte, houve um corte na construção (da unidade em Minas) com o PMDB, PCdoB, e isso pode dar problemas na frente. Vai haver uma disputa basicamente entre Fernando Pimentel e Patrus Ananias, mas tem que haver um acordo para estabelecer regras democráticas, o compromisso mútuo de aceitação do resultado.

Eu não temo a disputa, mas é preciso um acordo transparente. E não gosto de acordos que levam à especulação do que foi acordado. Tem que ter um mínimo de transparência. Agora, se não houver acordo e vier a disputa, que seja com esse compromisso breve: De uma parte aceitar a outra parte, a vontade da maioria que ganhar. Coisa que não houve em 2008, não houve acordo de procedimento. Então, não pode haver filiações massivas, feitas de forma… Sou a favor das filiações, o partido tem que crescer, mas não filiações que comprometam o processo. Então, tem que ter regras, acordadas previamente caso tenha que haver uma disputa, e que ela seja feita de tal forma para construir um programa comum.

Todo mundo perdeu com a disputa de 2008. Pimentel é um nome em ascensão que ficou desgastado. Patrus também sofreu um desgaste, por ele não ter aceitado ser candidato a prefeito, muita gente acha. O que aconteceu em Minas é o tipo de jogo que todos perdem, e o partido principalmente. Mas o PT foi muito bem no Estado, nas eleições municipais. O processo não contaminou fora de BH, um sinal de maturidade e foi muito melhor do que em 2004, porque naquele ano nós cometemos o erro de abrir as porteiras. Melhorou o desempenho no Brasil todo. As regras estão mudando e estão surgindo problemas novos. Agora, com a compra de votos, as eleições são perdidas em 24h. Juiz de Fora perdeu em 24h. As pessoas contratam 10 mil fiscais numa cidade para virar o jogo, compra eleitoral, contrato eleitoral.

Para não votar também.

Tem que fazer esse entendimento com os partidos da base do governo Lula e com o PMDB. Em Minas é separado, os partidos da base do Lula não andam com o PT nas eleições municipais ou gerais do Estado.

Como o mandato de senador do ministro das Comunicações, Hélio Costa termina também, se ele for candidato a governador – e aparentemente o vice-presidente José Alencar pode ser candidato ao Senado – a situação em Minas é complexa e precisa de um partido livre. Ela é muito é complexa.
O Aécio propôs prévia ao PSDB para escolha do candidato a presidente da República. Com isso ele está se incluindo. As prévias ocorrerão depois de setembro desse ano, caso haja. O Aécio tem três alternativas: sair vice do Serra (se perder a prévia) ou ganhar; sair senador por Minas; ou sair do PSDB, o que eu não acredito. Há grande possibilidade é o Aécio sair para o Senado. Zé Alencar pode ser candidato a senador ou a governador. É um quadro complexo. Hélio Costa também não pode ser considerado carta fora do baralho. Ele foi leal ao governo Lula esses anos todos, sua candidatura ao governo é legítima. É preciso conversar com ele sobre essa aliança, se não no 1º, no 2º turno.

E ter presente, sempre, que numa aliança nacional, nós não podemos cair na lógica de priorizar as questões estaduais. A nossa tradição é essa, a disputa nacional fica em primeiro plano. Evidentemente, que não há um só alinhamento. Cada realidade estadual comporta variações, mas essa lógica de tradição no nacional, de ajustar é extremamente forte entre nós.

Você assumiu agora a Fundação Perseu Abramo (de estudos do PT). Quais seus planos?

Nosso modelo é a escola nacional de formação. Eu queria dizer, que Zé Dirceu foi uma das pessoas, quando nós votamos a lei de fundo partidário, que teve a lucidez de colocar no documento 20% para as fundações. As fundações são essenciais no processo democrático de cada partido.

Os 20% se tornaram obrigatórios. E o PT é o único partido que está cumprindo rigorosamente isso, que não desvia nenhum centavo para nenhuma outra atividade.
Os outros (partidos) estão começando a construir fundações. O exemplo do PT está começando a se expandir por toda a América Latina. Vários países nos procuram no intuito de também fazer fundações. Acredito que em breve, haverá uma rede de fundações latino-americanas, similares às nossas. As fundações são muito boas porque os partidos vão virando máquinas eleitorais, com eleições de dois em dois anos e, no caso do PT, intervalo menor entre as eleições internas. Se você não tiver espaço para uma fundação, o partido se resume a isso (máquina partidária para preparar disputas eleitorais).

Nilmário e a questão da reforma política?

A reforma política praticamente foi inviabilizada pelo próprio PT. Uma parte de companheiros não assimilaram a nossa tradição e disseram “sou contra a reforma política”. Mas, nem eram. Abrimos as porteiras para outros. Por isso, as fundações são fundamentais, não só no PT. As outras fundações partidárias também são, inclusive a dos adversários, para os valores democráticos, republicanos. Para trabalhar, e vou tTrabalhar nessa tradição socialista, republicana e democrática.

Nossa tarefa será fazer uma avaliação do governo Lula. Não apenas aquela feita para a disputa política. Acredito que a Fundação Perseu Abramo (FPA) tem que contribuir para fazer uma avaliação do Brasil após sete anos de governo Lula. E temos também centenas de administrações, de governos municipais progressistas. A idéia é fazer uma avaliação sobre o que é o Brasil hoje, para pensarmos onde temos que ir. Não se ganha eleição apenas com o que foi feito. Você tem que convencer o povo de que vale a pena continuar conosco, agora (a partir de 2011) sem o Lula à frente do projeto. Esse é o nosso papel: uma grande avaliação sobre o Brasil.

Também temos que fazer um debate sobre a reforma política, e nela, incluir a questão das mulheres. Precisamos mostrar à sociedade que a representação das mulheres na política não é só um problema de gênero, mas da democracia. Temos que colocar isso na ordem do dia. Não é possível um país com 20 anos de Constituição democrática, não se dar conta de que a representação política das mulheres ficou estagnada. E vai continuar irrisória na próxima eleição e na outra. Outros países deram passos importantes nesse sentido. Cabe a nós estimular esse debate que não está na agenda. Temos que dar o mesmo peso à esta questão das mulheres, a mesma importância dada, por exemplo, ao voto em lista, à fidelidade partidária etc.

Sobre o debate dos 30 anos da anistia, as fundações podem contribuir muito. Apontar que houve com a anistia uma conquista, mas que ela foi uma obra incompleta. Ainda falta discutir a questão da tortura e do direito à verdade e à memória. Temos que enfrentar isso.

Lamentavelmente, nós não conseguimos manter as eleições diretas para o Mercosul em 2010. Não conseguimos mudar a regra. O Brasil queria 73 deputados, aumentar o número de deputados do Brasil e da Argentina, mas não houve consenso. Para 2010, não há mais tempo de fazer regras e preparar todo o instrumental para isso. Uma lástima. Em compensação, o Brasil avançou e nós temos que investir mais nessa questão e é prioridade absoluta. Agora, tem uma dívida do PT e da Fundação em relação à África. Priorizamos a Europa pelos vínculos e cooperação com as grandes fundações que vêm ajudando muito a América Latina, as fundações alemãs, francesas, suecas, mas não podemos esquecer o papel da África. Na realidade, o governo avançou, mas o PT e a Fundação não. Estão ausentes. Nem mesmo com os países de língua portuguesa, o partido conseguiu acompanhar essa dívida.

Outra coisa é aproximar novamente a FPA do PT. A Fundação tem objetivo próprio, ritmo próprio, mas não pode se descolar da agenda do partido que precisa ser construída junto. Naturalmente, as coisas mudam, o partido e a FPA mudaram, o país e a situação também. Portanto, nós temos que discutir novamente a agenda para aproximar. E temos uma editora espetacular. Faremos um livro “ABC da Crise”, junto com a CUT, o PT e a Fundação, em edição popular, para atingir e massificar. No mesmo sentido, o Lula, filho do Brasil da Denise Paraná, que dará um filme ótimo, será transformado numa edição popular. Esse livro foi feito em formato de tese, 200 páginas de entrevista com o próprio Lula. Vamos vender a 20 reais, junto com o filme. A própria Denise Paraná está refazendo o livro.

E está acompanhando diretamente o roteiro do filme.

E queremos aumentar a circulação da nossa revista, que é ótima. Não temos como voltar ao passado.

Há uma parcela da intelectualidade que até hoje se mantém resistente a ver o que está acontecendo no país promovido pelo governo Lula.
A FPA conseguiu manter uma rede grande. Em quatro anos de trabalho, nós tivemos uma lista de 700 intelectuais que se expressavam através dela, inclusive com oficinas, livros, cursos e na revista. Nosso objetivo é continuar mantendo essa linha. Alguns intelectuais que se afastaram do PT, mantiveram os laços com a FPA, o que foi muito bom.

Agora, o governo está trabalhando voltado para isso, através do imposto de renda, financiamentos habitacionais, está havendo a preocupação com a classe média. É importante o governo reagir nesse setor. Você vai conseguir se reaproximar do partido, se o governo também vai jogar uma mudança.

No fim do primeiro governo, havia uma compreensão incorreta de que nós isolávamos o direito das pessoas no atacado e o vendíamos no varejo. Que nós mantínhamos a política neoliberal, quando é outro modelo que está em questão: a organização do Estado, o planejamento, o papel das estatais. Cortar as privatizações.

Política industrial e tecnológica.
Inclusive está havendo uma mudança que reaproxima. Nós podemos contribuir com essa avaliação sobre o Brasil, mesmo porque o governo tem grandes intelectuais e grandes quadros. O partido fará a sua avaliação para a luta política. Nós temos que fazer a nossa com a academia, os intelectuais, as ONGs. Trazê-los para a discussão e fazer a avaliação dos lugares próprios. Não é proselistismo, mas situar para dentro da discussão, ouvindo o que eles querem dizer. É assim que nós vamos recuperar uma boa parcela.