Os ricos voltam a Davos, mas não carregam a arrogância de antes. O mundo que nos prometiam estava alicerçado na lama da privatização, das subprimes, dos derivativos. Até o ano passado, as vicissitudes financeiras eram atribuídas a operadores menores do mercado. Prevalecia a idéia de que os grandes rombos eram acidentais, resultado de descuido dos controladores das instituições financeiras, ou de fenômenos inesperados e incontroláveis. Agora, os grandes responsáveis se encontram nus. Livres do controle dos Estados nacionais e protegidos pelos governos, muitos dos grandes banqueiros do mundo se haviam tornado meliantes comuns. Logo que a crise estourou, registramos, neste mesmo espaço, que o jogo dos derivativos lembrava, entre outras, a famosa crise do encilhamento, no Brasil, no fim do século 19. Uma febre de falsa industrialização tomou conta do país, com o surgimento de dezenas de grandes empreendimentos, que só existiam na fértil e desonesta imaginação de alguns. Da venda de ações sem lastro em qualquer tipo de bens, passou-se às "correntes", muitas delas operadas em bancas de camelôs nas ruas, nas quais se pagava ao apostador antigo com dinheiro do apostador novo.

Só o fundo gerido por Bernard Madoff, o criador do índice Nasdaq, lesou os investidores em mais de 50 bilhões de dólares no mesmo processo criminoso. A diferença é que a sua banca estava montada em Wall Street, e a sua ação envolvia o mundo inteiro. Ele e outros, de seu mesmo clube, não estarão em Davos. Alguns, como é o seu caso, por se encontrarem impedidos de viajar, sob investigação criminal, com pulseiras eletrônicas de vigilância e prisão domiciliar. Outros, por não terem explicações a dar sobre os truques empregados para surrupiar trilhões de dólares e afundá-los nas profundidades do Triângulo das Bermudas, entre os sargaços e os paraísos fiscais.

Em Belém se inicia mais uma reunião do Fórum Social Mundial, que, desde 2001, em Porto Alegre, vem sendo o contraponto ao encontro de Davos. Visto com desdém, no início, o Fórum dos pobres, ao reunir-se este ano no Pará, mostra como suas teses são válidas diante da experiência histórica. Como podiam prever os organizadores do encontro, em que se destacavam os jornalistas Ignácio Ramonet e Bernard Cassen, de Le Monde Diplomatique, o neoliberalismo se confirmou como mero expediente de larápios.

Não foram apenas ladrões do dinheiro de investidores e dos acionistas que lhes foi confiado. Eles começam a ser responsáveis também pela morte direta de algumas pessoas. Na antevéspera de Natal, o aristocrata francês René-Thierry Magon de Villehuchet suicidou-se em seu escritório de Nova York: fora intermediário da aplicação de 1,4 bilhão de dólares de seus clientes nos fundos administrados por Madoff. No campo dos pobres, a sega de vidas é bem maior.

Em Los Angeles, sede da indústria cinematográfica que disseminou o american dream para o mundo inteiro, o trabalhador hospitalar Erwin Lupoe, 40 anos, matou terça-feira suas três filhas e seus dois filhos e a mulher, depois de o casal ter sido despedido da clínica em que trabalhava. Erwin, em seu bilhete dirigido a whom it may concern, explica que não podiam deixar os cinco filhos ­ três meninas e dois meninos, a mais velha de 8 anos ­ nas mãos de outras pessoas. Não deixar os filhos com os outros foi também a preocupação de muitas mães de família de Gaza, diante do massacre executado pelo Exército de Israel. Uma delas confessou que dormiam todos ­ ela, o marido e os numerosos filhos ­ em um só quarto, para que morressem juntos, se fossem atingidos. A morte de toda a família era, para essas mães, o último refúgio, a última esperança. As autoridades californianas estão preocupadas: o caso de Lupoe (assassinato de família inteira seguido de suicídio) é o quinto, em um ano, naquele estado ­ o mais rico da América do Norte.

O Fórum de Davos é o inventário de um mundo que se dissolve. Ele nada tem a dizer, e melhor seria que não voltasse a reunir-se. O luxo e a ostentação daquele convescote nos Alpes é ofensa também aos milhares que morrem, hoje, na África, massacrados pelos conflitos tribais provocados pela miséria e pelos dizimados pelas epidemias, como o cólera. O Fórum de Belém, ao reunir os excluídos do planeta e alguns poucos intelectuais solidários, pode ser a promessa de um mundo mais justo, o único possível.

Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil. Republicado no PortalFPA a partir do sítio Vi o Mundo


Para informações sobre a programação da FPA no FSM 2009, clique aqui.