FSM: O que as lendas urbanas nos ensinam sobre a amnésia da mídia
Reza uma lenda urbana belenense que o amigo do alheio popularmente conhecido como “Caveirinha”, que nos anos sessenta do século passado aterrorizou o bairro da Pedreira, na capital paraense, conhecia como ninguém a reza de São Cipriano, que tinha o poder de abrir cadeados e fechaduras e fazê-lo sumir, nos momentos de aperto, diante dos incrédulos olhos da polícia.
O maior diário paraense, em seu editorial “Fórum em busca de respostas”, publicado domingo (25), também parece ter recorrido à reza brava de São Cipriano para ignorar tanto a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial quanto os fatos que mudaram o mundo desde a realização do primeiro Fórum, ainda em 2001, em Porto Alegre.
Segundo o décimo princípio dessa Carta, “O Fórum Social Mundial se opõe a toda visão totalitária e reducionista da economia, do desenvolvimento e da história e ao uso da violência como meio de controle social pelo Estado. Propugna pelo respeito aos Direitos Humanos, pela prática de uma democracia verdadeira, participativa, por relações igualitárias, solidárias e pacíficas entre pessoas, etnias, gêneros e povos, condenando todas as formas de dominação assim como a sujeição de um ser humano pelo outro”.
Ao contrário do que pensa “O Liberal”, que não faz mais do que ecoar o pensamento que tradicionalmente vê o evento como uma lúdica e inconseqüente aventura, a crítica ao reducionismo econômico foi uma das primeiras respostas do Fórum Social Mundial ao canto da sereia do neoliberalismo, que no começo desse século vivia seu apogeu por conta da adoção, pela maioria dos países da América Latina, só para não irmos muito longe, das teses do Consenso de Washington, então a tábua de salvação das economias dos países ditos subdesenvolvidos.
Hoje, oito anos e uma grande crise econômica depois, o recente fracasso do neoliberalismo provou que não só outra economia é possível como, também, que os diagnósticos iniciais do Fórum Social Mundial estavam corretos.
A condenação do uso da violência como meio de controle social pelo Estado e da sujeição de um ser humano pelo outro, desde sempre foram respostas do Fórum também à intransigência histórica de determinadas nações, coincidentemente berços do modelo de desenvolvimento econômico neoliberal.
O recado, porém, não foi ouvido por nenhuma delas, sobretudo pelos Estados Unidos, que um ano depois do primeiro Fórum Social Mundial invadia o Iraque e submetia uma população estrangeira, mediante violência explícita, a rigoroso controle social, tudo em nome de uma guerra dita “preventiva”, eufemismo estadunidense para a predação das riquezas naturais iraquianas. O Iraque “nadar em petróleo” teria sido a principal motivação para sua invasão, conforme declarou, ainda em 2003, o vice-secretário da Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz.
Conclamar toda a humanidade a respeitar os Direitos Humanos e a estabelecer relações igualitárias, solidárias e pacíficas entre pessoas, etnias, gêneros e povos, também foi uma resposta dos milhares de participantes do Fórum Social Mundial à prática histórica de dominação exercida por determinadas nações sobre outras. Não obstante todo esse clamor, o Estado de Israel continua a massacrar civis palestinos em nome de seus interesses políticos, negando-lhes o direito à cidadania.
Embora o Fórum Social Mundial seja tanto um espaço de reflexão quanto de proposição de alternativas, jamais deixou de responder à altura todos os desafios e problemas que se dispôs a enfrentar. Prova disso são as milhares de ações integradas realizadas em centenas de países e muitos dos recentes avanços da cidadania democrática verificados na América Latina, sobretudo naqueles países historicamente marcados por um passado colonialista. E não seria exagero se afirmar que os novos ares que hoje inspiram os cidadãos dos Estados Unidos, após a eleição de Barack Obama, têm muito daqueles que inspiraram milhões de cidadãos nesses quase dez anos de Fórum.
O que os detratores do Fórum Social Mundial precisam se dar conta é que quem deve explicações à humanidade, por conta de sua irresponsabilidade, é o atual modelo econômico de desenvolvimento, e não o Fórum. Enquanto os verdadeiros responsáveis pelo fracasso do modelo neoliberal, pelo agravamento das crises energética e ambiental e pelo crescente processo de militarização das relações internacionais continuarem se fazendo de desentendidos, apontar suas contradições continuará sendo a melhor resposta que o Fórum pode lhes oferecer.
* Marcelo da Silva Duarte é Mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com