“Cabe-nos o desafio de recuperar a vida como valor central de todas as nossas relações sociais. Faz parte do enfrentamento de um grave problema de ordem ética e moral imposta a partir da hegemonia do pensamento liberal e neoliberal, que nos legou uma sociedade em que as mercadorias perdem a referência de sua razão social e vivem por si, alimentadas por uma cultura imediatista e hedonista. Tudo, inclusive o corpo, é mercadoria e se banaliza.” Esse é um trecho do artigo “A desigualdade é violenta” de autoria do companheiro Patrus Ananias, Ministro do Desenvolvimento Social.

“A medida dos custos da poluição prejudicial à saúde depende dos rendimentos perdidos por causa da morbidez e mortalidade acentuadas. Deste ponto de vista, determinada quantidade de poluição prejudicial à saúde deveria ser realizada no país com custos mais baixos, isto é, no país com os salários mais baixos”. Declaração atribuída a Lawrence Summers, um “especialista” do Banco Mundial

De um lado a lógica da mercantilização de todas as relações autorizando um estapafúrdio “especialista” a defender que se polua mais em países cujos salários são mais baixos, o que se justificaria por uma suposta relação custo/benefício onde a morte e a doença não passam de fatores de ponderação de risco para os investimentos. De outro lado, um pensamento que pretende instaurar a Vida, não só a humana, no centro gerador de sentido e como eixo orientador da ação do Estado.

Desde meados do século passado, no bojo do mesmo movimento que produziria os “consensos” e pactos que sustentaram o neoliberalismo, a direita organiza seus pensadores e seus artistas para que formulem um discurso onde o mercado é levado à condição de mito inabalável, sustentáculo único do nosso modo de vida, desqualificando qualquer dissonância, manipulando dados e hegemonizando sua presença nos meios de comunicação de massa de tal forma que nada que proponha outra forma de ver e descrever o mundo consiga minimamente encontrar meios de se expor.

É assim que essa cultura se forma e se impõe no mundo globalizado, mas não apenas por meio de arranjos econômicos, práticas de gestão e discursos políticos. Ela se instala entre nós enquanto construção simbólica, afirma-se no mundo como estética do mundo e é justamente o fato de serem construções estéticas que torna seu enfrentamento mais complexo.

Esse padrão estético está assentado sobre uma determinada “visão de mundo” que é assimilada diariamente por milhares de famílias, inclusive aquelas recém introduzidas ao consumo pelos programas sociais do governo Lula, tanto por meio das novelas quanto dos telejornais e que, portanto, tendem a reproduzir o comportamento hedonista e individualista que a estética do liberalismo grava tão profundamente em suas almas, tornando-as mais aptas a aceitar como verdade as lendas criadas pra sustentar o mito do deus mercado.

Essa estética do mundo é o condimento principal do grande “caldo” de aceitação do discurso neoliberal junto àqueles que mais são prejudicados por ele e é esse “caldo” de aceitação que as políticas de distribuição de renda, a retomada do papel regulador e fomentador do Estado, a valorização do servidor público, a promoção dos direitos humanos, entre outras políticas, começa a fazer desandar.

Enquanto estivermos no governo conseguiremos implementar políticas que desafiem a ordem instalada no mundo, sobretudo diante da recente crise das premissas macroeconômicas do projeto de globalização do Capital. Mas a cultura hedonista nos espreita, a espera de uma chance de contra-atacar.

Até quando políticas sociais conseguirão manter o dique? Ou mais, em que medida poderão, de fato, desmontar essa “visão de mundo” que sustenta essa cultura impregnada e que, sorrateiramente, espreita para solapar nossas conquistas? As respostas a essas questões serão positivas se houver o enfrentamento decidido do neoliberalismo diretamente na sua dimensão cultural, e isso não apenas pelo governo, mas também pelos movimentos sociais organizados, partidos políticos e pelos tais homens e mulheres de bem desse país.

Para isso é preciso saber onde estão sendo formulados os discursos, as manifestações artísticas e as práticas sociais que operam a partir de premissas como a solidariedade, a valorização do trabalho, a preservação do planeta, a promoção da igualdade, entre outras. Encontrá-las e construir meios pelos quais essas práticas possam se expressar e se sustentar, disputando corações e mentes para forjar novas “visões de mundo”, que não só expliquem melhor a realidade que nos cerca, mas sejam capazes de transformá-la em algo melhor.

O tamanho do desafio supõe uma agenda de fôlego. Do lugar de onde eu me encontro consigo ver quatro pontos fundamentais: (i) democratizar e desconcentrar os meios de comunicação social, sobretudo a televisão; (ii) fomentar a estruturação de uma economia da cultura onde diferentes modos de produção encontrem diferentes mecanismos de sustentação; (iii) dar efetividade e responsabilidade aos processos de participação cidadã; e (iv) implementar políticas sistêmicas e integradas de governo, nas quais a premissa seja dada pelo fortalecimento da cidadania.

O primeiro passo do longo caminho que esses desafios enunciam é a disputa que temos que travar no âmbito dos nossos próprios partidos ou movimentos sociais, o que já não é pouco. O mais difícil nesse caminho tem sido justamente encontrar espaços para fazer esse debate, sem o que não se adensam as formulações nem se enriquecem os posicionamentos pela vivência com o contraditório.

Tem nos valido o esforço militante e muitas vezes solitário daqueles que vêm fazendo da blogosfera o espaço central dessa disputa contra a cultura perversa e maniqueísta do neoliberalismo e hoje, sobretudo após a derrota dos “neocons” pelos “blogueiros democratas” na eleição americana, ninguém mais duvida da força dessa grande assembléia virtual que é a internet, mas ainda faltam armas.

Para o enfrentamento a que se refere e companheiro Patrus Ananias é preciso que o próprio governo perceba a dimensão cultural que está presente em programas como o próprio Bolsa Família e tantos outros. Falta-nos a “Uol de esquerda”, critérios desconcentradores, transparentes e estabelecidos por lei para distribuição das verbas de publicidade do governo e das estatais, a aprovação do PL 29 tantas vezes prometida, uma Conferência Nacional de Comunicação com poderes deliberativos, o sistema nacional de cultura com orçamento e articulação federativa, entre outras ferramentas que ainda não possuímos.

Mas é no íntimo de cada um de nós, militantes da cultura, que ainda falta um pouco de coragem para gritar a plenos pulmões que a disputa na dimensão cultural é a grande prioridade, ainda não assumida pela esquerda, para fazer com que enfim a Vida seja o valor central.

*Roberto Lima é dramaturgo e gestor cultural.

Publicado originalmente no Portal do PT, em 16/01/2009