Quarenta anos é uma distância temporal que já permite uma boa apreciação de eventos da história. Na verdade são quarenta e quatro, já que dezembro de 68 é o segundo estágio de abril de 64, estão ambos no mesmo episódio histórico. Quase meio século: é tempo suficiente para sedimentar a poeira sectária e clarear a perspectiva dos acontecimentos; esquecer inimizades e ter em mente que somos todos brasileiros.

Quarenta anos é uma distância temporal que já permite uma boa apreciação de eventos da história. Na verdade são quarenta e quatro, já que dezembro de 68 é o segundo estágio de abril de 64, estão ambos no mesmo episódio histórico. Quase meio século: é tempo suficiente para sedimentar a poeira sectária e clarear a perspectiva dos acontecimentos; esquecer inimizades e ter em mente que somos todos brasileiros.

Não sou historiador nem pesquisador mas ainda tenho certa memória dos fatos e guardo sentimentos e observações do que vivi naquele momento, como político e participante, ainda que modesto, dos acontecimentos.

O episódio ficou conhecido como Golpe Militar seguido de Ditadura Militar. E, com efeito, a iniciativa militar, usando a força, foi decisiva; militares são treinados para a ação. Mas a participação dos civis no planejamento, na preparação e na formação do clima convocatório da ação militar foi determinante. Civis da elite empresarial, do Congresso Nacional, das organizações da sociedade, da Igreja e da imprensa, civis em manifestações de massa nas ruas.

A preparação do golpe foi meticulosa, organizada por líderes empresariais em conjunto com alguns chefes militares. Colimava a prevenção contra qualquer tentativa de erupção revolucionária, muito temida na América Latina desde a revolução cubana, e, paralelamente, também, a interrupção da seqüência de governos por eles chamados populistas, que prejudicavam o País, na visão deles, e davam ensejo, por meio de alianças, ao crescimento da esquerda revolucionária nos desvãos do poder. Pelo voto, não conseguiriam; o desastre da utilização de Jânio Quadros como instrumento foi a derradeira esperança. Um expressivo grupo das mais destacadas lideranças empresariais nacionais e multinacionais organizou-se então no sistema IBAD-IPES, arrecadou recursos, convocou técnicos dos mais competentes e ligou-se aos chefes militares que, havia tempos, tentavam golpear o eixo político PSD-PTB-PCB.

O projeto era o de uma ditadura controlada por eles, uma ditadura honrada, racional e moderada, tipicamente positivista, tão ao gosto de elites e militares brasileiros até aqueles anos. Ganharam o primeiro tempo, em abril de 64; começaram a perder o segundo tempo em dezembro de 68.

Ganharam o primeiro ato, que foi o confronto entre dois projetos não-democráticos, o deles e o da esquerda. A esquerda superestimou suas forças, contou com o esquema militar fiel ao Governo, a chamada fidelidade ao poder constituído (o esquema Assiz Brasil), e avançou para o confrontação, convocando o povo às reformas “na lei ou na marra”. O plano era criar o clima revolucionário e tornar irreversível o processo segundo o paradigma de uma revolução socialista, com a necessária, inevitável ditadura humana e justa, de consolidação do novo sistema. O quadro parecia maduro e bem favorável: a desorganização da economia e do Poder, trabalhada por eles também, era muito grande; o descontentamento popular crescia rapidamente, a bipolaridade mundial era um fato e a União Soviética sustentava a revolução cubana, tão menor que a brasileira; e, finalmente, o Presidente da República, o chefe do Poder, era um aliado confiável e decisivo. Até o velho PCB, o Partidão, embarcou na canoa. Jango parecia o único sensato de visão mais realista; não queria trair seus velhos companheiros de luta mas tentava negociar compromissos com o capital, apelando para figuras de prestígio dispostas a ajudar, como Santiago Dantas, Celso Furtado, Tancredo Neves. Fosse porque o quadro político mundial era extremamente tenso, e os americanos não poderiam de maneira alguma tolerar uma revolução brasileira; fosse porque Jango não tivesse o talento negociador de Lula, o fato é que sua tentativa de moderação naufragou sob o crescente clamor da esquerda contra a sua “política de conciliação”. Eu assisti.

Na Câmara, escutei atento e inquieto a série de discursos mobilizadores de Bilac Pinto sobre “Guerra Revolucionária”; era um chamamento: façamos antes que eles o façam. Ouvi, arregalado, o brado cruzadista do Deputado Padre Vidigal, uma corruptela do princípio cristão: “Armai-vos uns aos outros!”. Acordei numa manhã de setembro com a notícia alarmante da revolta dos sargentos em Brasília. Eu convivia com o Sargento Garcia na Câmara; obviamente ele não me contava tudo mas era evidente a ingênua confiança dele na autonomia libertária dos seus camaradas. Depois foram os fuzileiros no Rio. O clima pré-revolucionário ou pré-golpista estava formado; trabalhado por ambos os lados. Venceram os golpistas, facilmente. Os militares, inclusive sargentos e cabos, aderiram maciçamente ao golpe.

O segundo tempo, o AI-5, foi a conseqüência natural; não existe meia-ditadura, ditadura amena e controlada. Os organizadores primeiros do golpe perderam o controle dos fatos e da lógica para os chefes militares da chamada linha dura, que exigiam mais liberdade de ação para combater e eliminar qualquer possibilidade de reorganização da esquerda, que começava a se manifestar com a bomba no aeroporto de Recife. Iniciou-se a repressão selvagem.

O enrijecimento da ditadura foi retirando progressivamente muitos dos apoios iniciais da sociedade e do próprio empresariado, apesar do financiamento à Operação Bandeirantes. Houve, sim, apoio civil também em 68, como hoje os jornais estão mostrando, até na OAB e na ABI. Mas já foi um apoio por medo ou por oportunismo, carreirismo. Não teve mais a organização elitista e racional com os objetivos límpidos de 64; imperou a regra bruta da eficácia na guerra. Não teve mais a imprensa toda a favor, a Igreja abençoando e a classe média compacta e entusiasticamente na rua pelo golpe. Até mesmo interesses dos golpistas originários começaram a ser contrariados, especialmente a partir do Governo Geisel. As eleições de 74 mostraram claramente, pela primeira vez, o repúdio inequívoco da sociedade. A ditadura estava condenada; era questão de tempo.

*Roberto Saturnino Braga é ex-senador pelo PT/RJ e membro do Conselho Curador da FPA