Amadurecer não é envelhecer
Não tenho a pretensão nem o desejo de contestar o artigo do Emir Sader, até porque tendo sempre a concordar com tudo o que ele diz e tenho por ele uma honesta admiração. O que eu quero é oferecer aos companheiros de hoje uma outra perspectiva, vista por quem não é petista fundador, quem não tem nem nunca teve aquele ardoroso sentimento originário ao qual Emir se refere. Meu artigo é um contraponto ao dele, uma linha de visão que não quer se opor mas seguir a pauta dele com outras notas, uma linha aberta pela minha condição de velho socialista, de militante de antes do PT.
O PT realmente foi fundado num momento histórico de grande abatimento da esquerda brasileira, esmagada internamente pelo golpe militar e descoroçoada pelo esclerosamento da experiência soviética. Era uma nova perspectiva de luta que brotava, o verdadeiro Partido dos Trabalhadores, uma renovação de expectativas, com novos e mais democráticos métodos de militância. Mas era uma proposta de renovação que trazia no bojo, também, uma certa dose de desdém em relação às outras organizações que há muito lutavam no campo da esquerda e que haviam sofrido a derrota acachapante de 64. Essa autoconfiança na força e na pureza da nova proposta tinha, para os antigos partidos da esquerda, uma aparência e um aroma de arrogância. E o PT cresceu sozinho, sem fazer alianças, um pouco antipatizado mas ostentando orgulhosamente essa limpidez ética.
Cresceu até encontrar o limite do crescimento isolado e o ponto de convencimento da necessidade de alianças e compromissos exteriores à sua cápsula asséptica, afim de chegar ao poder com o seu líder e sua proposta transformadora. Até atingir o ponto de maturação dado pela compreensão de que a ética da política não é a pura e jovial ética de convicção, kantiana, mas uma outra, que envolve a consideração dos resultados e a disposição de fazer concessões e barganhas em busca desses resultados almejados, ainda que em escala reduzida, que Weber chamou de ética de responsabilidade. Claro que, como se diz em Campos dos Goitacazes, quem nunca comeu melado quando come se lambuza. E no arroubo desse caminho de concessões que nunca havia trilhado, o PT também amadureceu.
Lula foi o mais lúcido, negociou o que precisava ser negociado mas não se deixou lambuzar. Nos meses que antecederam a posse, o Capital mandou o seu recado: a inflação e a taxa de câmbio foram para as alturas, numa mensagem clara de reminiscência dos episódios Vargas e Goulart. Eu vi de perto o golpe de 64 e um dia quero falar mais do episódio e da figura grande e injustiçada de João Goulart. Lula compreendeu os sinais e negociou, exerceu com muita maturidade e competência o seu maior talento. A condição de entendimento foi a carta de Palocci e a nomeação de Meirelles no Banco Central. Com esse resguardo, o Capital se conformava com a vitória do PT e aceitava o rompimento com o neoliberalismo, o reaparelhamento do Estado para intervir na economia e para redistribuir renda e riqueza.
E o Governo pôde trabalhar e buscar, gradativamente, a realização dos seus objetivos partidários e compromissos fundamentais com o povo. Dizer-se que a política econômica foi uma continuação do neoliberalismo é um juízo bastante equivocado. Neoliberalismo não é política fiscal e monetária conservadora e restritiva. Isso até um governo socialista pode fazer se a conjuntura o exigir. Pessoalmente, acho que o arrocho monetário foi excessivo, mesmo considerando o temor-pavor daquilo que não podia acontecer, que era a ressurreição da inflação.
Mas neoliberalismo é outra coisa; não está diretamente ligado à política monetária. Neoliberalismo é Estado mínimo, é Estado retraído, fora do jogo econômico inteiramente privatizado e entregue ao Mercado. É o conhecido “laisser faire”. Esta é a essência do neoliberalismo, que o Governo Lula rejeitou e jogou fora, encerrando o capítulo vergonhoso das privatizações, retomando a missão planejadora e desenvolvimentista do Estado e das Estatais que restaram, criando até uma nova estatal, a TV Brasil, e inaugurando, por cima do Mercado, a nova dimensão do Poder Público (Estado) com os programas de redistribuição de renda. Este era o núcleo principal definidor dos compromissos políticos e históricos do PT e do seu líder quando se lançaram ao poder nacional. Claro que a profundidade e a velocidade dessas transformações estruturais não é aquela da expectativa de muita gente e especialmente de muitos militantes. Mas é a intensidade do possível diante da realidade política do País, o limite que a esquerda não respeitou em 64, embora o próprio Joâo Goulart tivesse consciência dele.
A tarefa governamental transformadora é tão ingente que, realmente, o Partido se deixou absorver por ela quase completamente. E é de muitas formas natural que assim seja, eis que as forças opositoras a enfrentar, ultrapassar e remover são mesmo pesadas, e qualquer partido no poder evita sempre o risco de, na crítica, ainda que construtiva e progressista, somar forças do lado opositor, como aconteceu com trabalhistas e comunistas que se dividiram ferozmente nas vésperas de 64. Eu vi e ouvi, perplexo, os insultos à chamada política de conciliação de Jango.
Enfim, na minha visão de militante antigo, é a maturidade do exercício do poder, não é o envelhecimento. Penso que a intuição da opinião popular compreende isso e, se hoje dá muito mais créditos a Lula do que ao PT, saberá amanhã reconhecer a presença do Partido e a energia que emprestou ao Governo na remoção de montanhas para abrir esta nova via no relevo da história política brasileira. Os trabalhistas, reconhecidos pelo povo, fortaleceram-se substancialmente depois de Vargas, que também era maior que eles na opinião pública. Afundaram irremediavelmente quando se dividiram no período Jango.
Mas é claro que o PT tem de buscar, permanente e consistentemente, a luz e o norte dos caminhos seguintes. Não terá mais o vigor fresco das etapas de juventude – os partidos são organismos vivos e, como tais, têm infância, juventude, maturidade e velhice. Sinceramente não acho que já chegamos à senilidade. Estamos na idade da responsabilidade, que exige muito no dia a dia, mas não nos deve impedir, de maneira alguma, de enfrentar os novos desafios. A meu ver, eles estão situados em torno do aperfeiçoamento da democracia que não aceita mais a delegação absoluta do sistema representativo clássico. Este, sim, a meu ver, envelheceu.
Roberto Saturnino Braga é ex-senador pelo PT/RJ, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo