A Editora Record lança o livro “O mito do colapso do poder americano”, de autoria conjunta de José Luís Fiori, Carlos Medeiros e Franklin Serrano professores do Núcleo de Estudos Internacionais do Instituto de Economia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em meio à grave crise econômica que assola todas as nações do planeta, os autores argumentam que a desordem, a crise e as guerras fazem parte de uma transformação de longo prazo, que vem aumentando naturalmente a pressão competitiva dentro do sistema mundial e provocando uma nova corrida imperialista entre as grandes potências.

O livro surgiu durante uma conversa entre os três professores no final de 2007. Na ocasião, eles debateram sobre a abordagem de políticas internacionais, que acreditavam estar muito defasada , relata Franklin Serrano. Com a recente crise na economia norte-americana, iniciada com o colapso do setor imobiliário, a obra acaba por caracterizar uma fase imediatamente anterior à conjuntura atual. No livro, Carlos Medeiros trata das diferenças no processo de transição para o capitalismo da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e da China. José Luis Fiori, por sua vez, ao contrário do que alguns autores vêm defendendo, argumenta que a crise atual não significa o fim do poder dos Estados Unidos ou do capitalismo. Para Fiori, “apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma sucessão na liderança política e militar do sistema mundial”. Do ponto de vista econômico, defende ainda, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada vez maior entre a China e os EUA.

Segue entrevista concedida por José Luís Fiori ao jornal O Globo (em 30/11/2008), tratando de um dos argumentos centrais do livro:

“Vai haver uma nova corrida imperialista”

Professor e diretor do Programa de Pós-graduação de Economia Política Internacional da UFRJ, José Luís Fiori contesta a tese de que a crise global, que nasceu no berço americano, signifique o fim ou colapso do poder global dos Estados Unidos ou a crise terminal do capitalismo.

No livro, Fiori volta ao século XIII para mostrar o movimento de formação dos Estados nacionais. Ele prevê “nova corrida imperialista”, com os EUA no papel central, junto com China e Rússia, indo para África e Ásia Central. E diz que acabou a “adolescência assistida da América do Sul”.

No seu livro, o senhor prevê uma nova corrida imperialista. Como isso vai ocorrer, quem serão os atores dessa nova corrida?
Fiori: É uma idéia de uma explosão, que eu exponho pela primeira vez nesse livro. Cheguei a essa conclusão, a partir de uma reflexão longa, com um diálogo crítico com toda a teoria dos ciclos hegemônicos. Concordo que os EUA estão enfrentando no campo econômico e de sua estratégia militar internacional uma grande crise. Minha divergência é teórica e tem a ver com a própria déia de que o foco de analise do sistema mundial seja a ascensão e declínio de países tomados individualmente. A minha pesquisa histórica e minha reflexão teórica foram cada vez me fazendo pensar mais na relação da Inglaterra e Estados Unidos, não como uma sucessão de ciclos hegemônicos, e sim, uma continuidade de uma mesma força expansiva anglo-saxônica, que arranca da Holanda, passa pela Inglaterra e chega ao Estados Unidos. Mesmo que aceitasse que houvesse fim do ciclo hegemônico, ela não tem nada a ver com o fim de um modo de produção e da uma formação social.

Globo: Fala-se até em fim do capitalismo…
Fiori: Mesmo que acreditasse nesse colapso, o fim da supremacia americana não é o fim do capitalismo. Não vai ser o fim do capital financeiro. Não há nenhum sinal disso. A origem desse sistema mundial que nasce da Europa e é ganhador impõe sua supremacia ao mundo, nas suas formas básicas de organização do poder como estado e da economia como capitalista. Vitória estrondosa que nasce na Europa nos Séculos XII a XIV até o aparecimento das economias nacionais no fim do século XVI. Fernando Braudel sugere que é preciso subir ao sótão para ver as relações do príncipe com o banqueiro. O sistema mundial que nasceu na Europa se assemelha mais a um universo em expansão contínua do que a uma sucessão de ciclos vitais ou biológicos. Como se este sistema acumulasse energia e se expandisse de forma continua desde o século XIII e passando momentos de explosão expansiva, como no século XVI, XIX e agora de novo, neste início do século XXI.

E a globalização?
Fiori: O que se globalizou foi o fenômeno do estado nação. Agora tem estado nacional para todos os lados. No início do Século XX, eram no mais 60 países, no máximo. Agora tem 200 estados. O capital, quando mais fortalece e expande, mais fica nacionalista.

Com a crise, isso ficou mais claro?

Fiori: Agora só um cego não vê. Ficou transparente a relação inseparável que sempre existiu entre o príncipe e banqueiro, de que fala Braudel.

O senhor quer dizer que não é possível essa separação entre estado e mercado?
Fiori: Jamais, porque a união entre o Estado e o capital foi a originalidade da Europa e é a grande fonte da força expansiva vitoriosa deste sistema que nasceu na Europa. Uma teoria que só fale do mercado não dá conta do que seja o capitalismo. Como disse Braudel, “o capitalismo é o antimercado”. O pior do ponto de vista ético é que o que “ordena” esse sistema mundial é a possibilidade permanente da guerra, e a existência de “eixos de conflito crônicos”. Não são os acordos internacionais ou multilaterais, estes acordos são sempre transitórios, o que permanece é a possibilidade e a preparação permanente para a guerra. Além disto, este sistema em expansão é sempre “imperialista” e neste sentido o imperialismo não é uma etapa superior do capitalismo, é sua condição originária e permanente. Neste sistema interestatal capitalista a sua liderança é sempre coletiva, competitiva e complementar. E seus líderes transitórios nunca desaparecem. Neste sentido, uma vez que se afirmou globalmente o poder americano, ele pode se transformar, mas já não desaparecerá mais, a menos que este sistema ou universo desapareça como um todo. Para bem ou para o mal, já não há possibilidade de uma ordem mundial futura, qualquer que ela seja, sem a presença do poder americano, que jamais vai parar de acumular poder e riqueza, mesmo quando já esteja quilômetros à frente dos seus seguidores e competidores imediatos.

E para onde deve se dar esta nova onda expansiva de que o senhor fala?

Fiori: Minha impressão que está expansão competitiva e imperialista se dará imediatamente na África Central, e em um tempo mais, na América do Sul.

Então, a África é o continente da vez?
Fiori: Lamentavelmente, porque é um continente que foi punido por todas as ondas expansivas e imperialistas do sistema mundial. Além disso, a competição entre as grandes potências gera “zona de fratura” onde tendem a se multiplicar as guerras civis, como já está acontecendo de novo na África A América do Sul virá logo a seguir por se tratar de um território com imensos recursos energéticos, minerais, hídricos, com zonas de plantações de alimentos espantosamente produtivas e população escassa.

É um território potencial sim. Há sinais disso. Conflitos aqui e lá. Uma manifestação indiscutível de que a região está se integrando dentro do sistema mundial de competição entre as nações. Já não há mais espaço vazio. Todos estão dentro da zona de pressão competitiva global. Neste sentido, costumo dizer que acabou a “adolescência assistida” da América Latina. Chegou a hora de caminhar com as próprias pernas dentro de um mundo cada vez mais complexo. O nível de relacionamento econômico, trocas, de comércio e investimento, está crescendo. As conexões energéticas e de transporte estão se adensando. Seremos em breve os maiores exportadores de alimentos do mundo, e a Argentina já ocupa um lugar de destaque neste campo. Não é uma coisa trivial. E há o petróleo. A água é questão essencial.

Já há sinais disso?

Fiori: Por todo o lado. Pequenos conflitos já são manifestações de coisas que estão em curso. Você vê menos porque a América Latina é uma região sabidamente de supremacia americana. Mas a ativação da IV frota americana é um exemplo deste aumento da preocupação com o continente. Estas disputas no continente não passam apenas pelo interesse e a competição externa, passam também pela expansão do Brasil e dos seus interesses econômicos e políticos que também vão se internacionalizando rapidamente. Aqui também, este aumento da pressão competitiva tende a criar novas “zonas de fratura”, ativando assimetrias e diferenças
preexistentes que acabam se transformando quase invariavelmente em guerras civis ou regionais, como acontece em todo o mundo. As assimetrias e conflitos locais que estavam latentes e que se transformam em conflitos vivos.

E a Rússia?
Fiori: Na verdade, um dos grandes desestabilizadores do sistema mundial nas próximas décadas deverá ser a Rússia e não a China. A Rússia foi a grande derrotada deste final do século XX, e perdeu cerca de um terço do território do seu velho império. Daqui para frente sua estratégia estará sempre voltada para a recuperação total ou parcial de suas perdas. Isso será um fator básico de contestação de qualquer nova ordem que nasça nas próximas décadas. É inevitável. Não há como a política externa e a estratégia internacional da Rússia não estarem orientadas nos próximos 50 anos pela perdas que teve nos últimos 15 anos. Não há como. É da lógica do sistema, é da história.

Por que?
Fiori: Não se tira um terço de seu território e de sua população sem provocar uma resposta. Ninguém, nenhum povo jamais aceitou pacificamente este tipo de amputação.

No seu livro, o senhor diz que não haverá um duelo final entre China e Estados Unidos.
Fiori: Nem haverá um duelo final e a integração financeira só tende a crescer, numa aliança virtuosíssima. Isso não quer dizer que não vão competir fortemente pelo controle de energia e de alimentos…

E o Obama?
Fiori: Frente a uma situação como a que estamos vivendo, não há conversa. É uma crise econômica, profunda, extensa, gravíssima, prolongada. A isso se junta a incerteza do ponto de vista estratégico militar americano depois do fracasso no Oriente Médio. A junção das duas coisas cria um situação de grande complexidade seja na administração da crise econômica, seja na reorientação da estratégia militar internacional dos EUA.

E a sua futura política externa?
Fiori: Neste campo, muitos depositam expectativas contraditórias no novo governo americano. Mas, o programa democrata da sra. Hillary como o de Obama são explicitamente intervencionistas. Além disto, a provável futura secretária de Estado, sra. Hillary Clinton, foi a favor da guerra no Iraque. E no governo de Bill Clinton, os Estados Unidos fizeram cerca de 48 intervenções ao redor do mundo ao contrário do que se imagina do que foi a década de 90. Os Estados Unidos têm hoje acordo militar com cerca de 130 países e tem mais de 700 bases militares ao redor do mundo. Os EUA não têm mais como recuar desta posição global. Enfrentarão dificuldades e contradições crescentes, mas não recuarão por sua própria vontade.

O senhor diz que o Brasil não terá uma presença internacional maior, que vai consolidar sua posição na América do Sul.
Fiori: O que digo é que o Brasil não tem capacidade nem mostra interesse em projetar globalmente o seu poder. Mas sim tem um poder e capacidade crescente dentro da América do Sul. Neste sentido, deve se prever uma tensão maior entre o Brasil e a nova administração democrata do que a que houve durante a administração republicana. Haverá disputa de interesses de todos os tipos crescentemente, mas não quer dizer que haverá um rompimento com os Estados. Pela tradição dos democratas, e pelos programas de Obama e Clinton, pode-se prever uma intervenção americana maior na América do Sul. Portanto, deverão surgir mais áreas de divergência entre o Brasil e os EUA. É natural que assim seja. Eu diria que é inevitável. Além disso, o Brasil tem alargado sua presença em vários cenários, e instâncias multilaterais, isso o Brasil expandiu muito. Relações com a África, com a Ásia, o G-20. Mas isso é diferente de ter uma capacidade de projeção global de poder que tem a ver Basicamente com canhão e capital.

O senhor acredita numa mudança na engenharia financeira depois da crise?
Fiori: Sim, mas sem qualquer tipo de acordo ou regulação multilateral . Mais uma vez, como nas década de 70 e 80, os EUA vão tentar reorganizar e regular o sistema a partir de si mesmo. O resto serão reuniões e discursos. Bom material para discussões de intelectuais e teses acadêmicas. Mas que não servirão para mais nada do que isto.