(…) Uma outra noite. Levanto um dedo na penumbra. Um terceiro dia. Uma outra noite. Três dedos da mão esquerda. É nesse dia que estamos. Quatro dias então e três noites. Avançamos rumo à quarta noite., ao quinto dia. Rumo à quinta noite, ao sexto dia. Mas somos nós que avançamos? Estamos imóveis, amontoados uns sobre os outros, é a noite que avança, a quarta noite rumo a nossos futuros cadáveres imóveis” (Jorge Semprún, A grande viagem)**

Perdemos a noção do tempo”. Esse é o primeiro verso dos: “Poemas do Povo da Noite”. A versão definitiva do poema foi escrita em outubro de 1974, na Penitenciária do Carandiru, quando eu já cumprira o segundo ano de prisão. Antes fora rabiscada em pedaços de papel de cigarro, em letra miúda, ou memorizada para escapar das revistas constantes nas celas do 10º. Batalhão de Caçadores – 10º. BC, Goiânia; do Pelotão de Investigações Criminais – PIC, no Setor Militar Urbano, em Brasília, da OBAN/DOI-CODI do II Exército, do DOPS, do Presídio Tiradentes, do Presídio do Hipódromo ou da Casa de Detenção e da Penitenciária do Estado de S. Paulo, no complexo Carandiru e do Presídio Romão Gomes, em S. Paulo. Não exatamente porque os carcereiros dessas instituições cultivassem especial interesse pela poesia…

“Perdemos a noção do tempo.”

Cabe uma breve reflexão sobre ele. É possível perceber o tempo de várias formas. Quinze anos depois dos acontecimentos que o livro narra, um general confortavelmente instalado em sua poltrona de reformado, diria numa entrevista em que contava reminiscências sobre sua participação em interrogatórios de prisioneiros políticos, durante a vigência do AI – 5, a seguinte frase: “O primeiro objetivo do interrogador é fazer com que o interrogado perca a noção do tempo.” Impressionou-me a coincidência dos termos. Assim começam a ruir as defesas dos prisioneiros. O método consistia, além da brutalidade dos espancamentos, dos choques elétricos, do pau-de-arara, da cadeira-do-dragão, em oferecer a comida em horários diferentes, sem nunca repetir o mesmo ciclo; despertar altas horas da madrugada quem passara os últimos dias sem saber distinguir o dia da noite, encerrado numa cela sem luz; enfiar a cabeça num capuz para que o preso não fosse capaz de compor uma idéia clara sobre os espaços por onde era conduzido; chamá-lo para o interrogatório e devolvê-lo para a cela sem nenhuma pergunta; destruir metodicamente todas as referências, todos os laços com a realidade que antes o cercava para deixá-lo inteiramente vulnerável. No século XX em que, mais do que em qualquer outra época da história, a ciência foi posta, de forma monstruosa, a serviço da dor e da morte, é necessário registrar que o general tinha razão, e mais, que alcançou, em parte, seu objetivo.

Há um amontoado de corpos no vagão, esta dor lancinante no joelho direito. Os dias e as noites. Faço um esforço e tento contar os dias, contar as noites. Isso talvez me ajudará a ver claro. Quatro dias, cinco noites. Mas talvez eu tenha contado mal ou então há dias que se transformam em noites. Tenho noites a mais, noites a revender. Uma manhã, é seguro, foi numa manhã que esta viagem começou. Toda aquela jornada. Em seguida uma noite. E depois uma outra jornada. Estávamos ainda na França e o trem apenas tinha se mexido. Ouvíamos vozes, às vezes ferroviários além do ruído das botas dos sentinelas. Esqueça esta jornada, isto foi o desespero. Uma outra noite. Levanto um outro dedo na penumbra. Um terceiro dia. Uma outra noite. Três dedos da mão esquerda. É nesse dia que estamos. Quatro dias então e três noites. Avançamos rumo à quarta noite, ao quinto dia. Rumo à quinta noite, ao sexto dia. Mas somos nós que avançamos? Estamos imóveis, amontoados uns sobre os outros, é a noite que avança, a quarta noite rumo a nossos futuros cadáveres imóveis”.**

Reproduzo aqui a íntegra do parágrafo de onde extraí as linhas que me serviram de epígrafe. Com ele, espanhol, Jorge Semprún abre sua pequena obra-prima de denúncia: “A grande viagem”. Por que essa obsessão em contar os dias e as noites? Por que a desesperada determinação de não deixar escapar o comboio das horas? De alimentar a patética ilusão de sobre ele exercer algum controle? Ainda que a visão só antecipe os futuros “cadáveres imóveis”?

Talvez porque naqueles primeiros dias, o prisioneiro perceba o tempo como arrimo, amparo, um muro, enfim, que o protege na batalha em que é lançado nu diante do desconhecido. Cada instante que passa será um tijolo no abrigo construído para defender o que resta de sua remota humanidade, devorada pela tortura e pelo medo. Contudo, se o tempo é um muro que o protege, também será o lobo que o sitia. Pelas artes do medo, vaza para dentro e morde a medula. O medo desumaniza. Impõe a cegueira do reflexo e do instinto. Cava até chegar aos ossos. Liberta o animal que pulsa sob o verniz da razão. Coragem não é precisamente ausência de medo. É quando a razão, ao medo se sobrepõe pela porta do delírio e devolve ao prisioneiro, num lampejo brusco, aquela esperança contra toda esperança: o torturador pode me matar, mas não pode me vencer. Porque a minha morte é a minha vitória sobre sua força. O tempo então se converte no fio que mede os limites de sua resistência à dor. Os limites da lealdade às suas convicções e aos seus companheiros que, por uma palavra que lhe escape, podem perder a liberdade e, naquelas circunstâncias, freqüentemente, a vida.

Essas foram, em parte, as circunstâncias em que foram escritos e remetidos para fora das prisões, os Poemas do Povo da Noite. Durante cinco anos de pena eles iludiram a censura e cegaram os olhos dos carcereiros. Pelas mãos e pelo desassombro de pessoas que perceberam na poesia uma sutil e misteriosa habilidade para resistir à brutalidade dos tiranos. E acender, ainda que tênue, um lume de esperança no coração dos que lutam. Talvez elas, as circunstâncias, de algum modo, contribuam para que o leitor compreenda os tempos subterrâneos que esses versos denunciam. E, com Bertolt Brecht, esta geração que declina possa pedir “Aos que vão nascer”:

(…)“Vós que vireis na crista da onda
em que nos afundamos,
pensem
quando falarem de nossas fraquezas
também nos tempos de treva
que haveis escapado.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
envolvidos em lutas de classes, desesperados
quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto, sabemos:
também o ódio à baixeza deforma as feições.
Também a ira pela injustiça torna rouca a voz.
Ah, e nós
que queríamos preparar o chão para o amor,
não pudemos, nós mesmos, ser amigos .”

Mas, vós, quando chegar o tempo
do homem ser parceiro do homem
pensai em nós com simpatia
.”

A indagação que permanece para a sociedade brasileira hoje e para os que virão é essa: “Mas somos nós que avançamos? Ou (…) é a noite que avança” como afirma Semprún?


*Pedro Tierra é poeta. Cumpriu cinco anos de cárcere durante a vigência do AI -5. É Conselheiro da Fundação Perseu Abramo.

**Jorge Semprún, romancista, roteirista de cinema e militante espanhol. Sobreviveu ao Campo de concentração de Buchewald. Autor, entre outras obras, de “A grande viagem”, “A segunda morte de Ramón Mercader”, “Autobiografia de Federico Sánchez”