Éric Toussaint: Que crise? Que respostas o Sul pode dar?
A crise econômica e financeira começou no Norte
A atual crise mundial desencadeou-se no Norte como consequência da crise das hipotecas subprime, em 2007, nos Estados Unidos. E essa última crise originou-se nas dívidas privadas. Os bancos e agências de crédito hipotecário haviam criado uma monstruosa montagem de dívidas que, finalmente, entrou em colapso, iniciando, assim, a crise financeira cujas repercussões todavia persistem. O resgate dos bancos na Europa é sua clara consequência e a onda de choque da crise de 2007 e suas réplicas continuarão fazendo-se sentir.
A crise nascida nos países do Norte, nos Estados Unidos e na Europa não é somente financeira, mas também econômica, isto é, atinge diretamente a economia real, a produção. Há uma crise no setor da construção nos EUA, na Espanha, na Grã Bretanha e na Irlanda e se estenderá a outros países. Muitos postos de trabalho nesse setor perigam, em particular os postos ocupados por imigrantes, especialmente latino-americanos (equatorianos, bolivianos etc) nos Estados Unidos ou na Espanha. As perdas de emprego serão inúmeras nesse setor, causando a diminuição no valor das remessas dos emigrantes aos seus países de origem e prejudicando suas famílias.
Apesar de que essa crise começou no Norte, seus efeitos serão sentidos no Sul. As indústrias do Norte terão que reduzir a produção ao diminuir o consumo e esta queda de produção provocará uma menor demanda de petróleo, de gás e de matérias primas (minerais). Acabará a cadeia com uma queda do preço dos produtos primários -coisa que já está acontecendo desde setembro de 2008-. Infelizmente, esta redução de preços fará com que os salários nos países em desenvolvimento também se achatem.
A crise alimentar mundial também tem sua origem no Norte
Aparte dessa crise financeira e econômica existe também uma crise alimentar que atinge diretamente os povos do Sul, com o aumento do preço dos alimentos em 100% e, inclusive, no caso do arroz, com aumento de até 300%. 80% da população de muitos países do Sul, especialmente os mais pobres da África Subsahariana, dedicam 95% de seus ingressos para a compra de alimentos. Essas pessoas já não podem comer o necessário. Portanto, existe um aumento progressivo no número de pessoas que passam fome, milhões de pessoas incrementam o exército dos famintos. Antes da crise, havia 820 milhões de pessoas com fome no planeta, sem contar as que estão subalimentadas. Com essa crise, a população que está em uma situação de insegurança alimentar aumentou em mais de 140 milhões de pessoas.
Qual a causa dessa crise alimentar?
Uma vez mais, a origem está no Norte. Os industriais dos agronegócios do Norte convenceram os governos de Washington, da União Européia e de outros Estados europeus a que subvencionassem a produção de agrocombustíveis a partir do milho, do trigo, da soja ou da beterraba. Por conseguinte, um grande volume de produtos alimentícios se desvia para a produção de agrocombustíveis, causando uma queda significativa na oferta de cereais e de outros alimentos no mercado, gerando um enorme aumento dos preços.
Além disso, esse aumento dos preços foi reforçado porque, de novo, no Norte, grandes investidores institucionais (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão) começaram a especular em um setor dos mercados financeiros onde antes não eram ativos: o denominado “mercado a prazo dos cereais”, bem como nos respectivos mercados a prazo. São as Bolsas de Chicago, de Kansas City e de Minneapolis. Os preços a prazo dos cereais contratados nos Estados Unidos nessas Bolsas se refletem em todo o mundo e não somente sobre o preço a prazo, mas também sobre o preço atual. Em resumo, a produção de agrocombustíveis por um lado, e, por outro, a especulação no mercado a prazo dos alimentos causaram a crise alimentar que padecemos.
Não esquecer a crise climática cujos efeitos são muito graves
A quarta crise é a climática. Temos a tendência de esquecê-la porque a crise financeira está no centro de interesse do Norte e a crise alimentar angustia no Sul a milhões de pessoas e mobiliza as energias de outros tantos a cada dia. Na medida em que não houve catástrofes ambientais impressionantes nos últimos meses, já não mais se falou em mudança climática. Porém, a mudança climática está presente e tem efeitos inevitáveis ao longo do tempo. Não são percebidos necessariamente como desastrosos e rápidos, porém aí estão. O aumento do nível médio dos oceanos afetará a população de toda a rede hidrográfica de um país como Bangladesh, onde vivem 150 milhões de pessoas. Mais da metade da população desse país vive ao nível do mar ou um pouco abaixo do nível do mar porque há diques de proteção. Nos próximos dez anos, os efeitos serão terríveis. Citei Bangladesh, porém poderia ter citado outras regiões do Sul.
Nesse aspecto também a origem da crise está no Norte: a culpa é do modelo de desenvolvimento produtivista capitalista. Esse modelo também existe no Sul; porém, o Norte produziu uma quantidade fenomenal de contaminação atmosférica desde o princípio da revolução industrial. Ouve-se sobre a liberação de gases de efeito estufa e se pensa na emissão atual; porém, temos que recordar que os gases de efeito estufa são resultado das atividades industriais; concentram-se na atmosfera há séculos. É um efeito cumulativo e agora temos que reduzir sua emissão. Apesar de que a China emite cada vez mais gases de efeito estufa, seria um erro dizer que os chineses ou os indianos com seu desenvolvimento são tão responsáveis quanto os Estados Unidos ou quanto a Europa pela mudança climática, uma vez que aplicam o modelo de desenvolvimento produtivista. Os responsáveis são os países que foram o berço da revolução industrial; que, com o método de consumo lunático, incrementaram, por exemplo, os automóveis individuais e o desperdício de combustíveis fósseis.
Se o Norte é o lugar geográfico de origem das quatro crises, o sistema capitalista é a causa fundamental.
Em resumo, temos quatro crises: financeira, econômica, alimentar e climática que atingem a todo o planeta, cuja origem se situa nos países do Norte. Depois de ter compreendido isso, não é necessário dar mais voltas, já que não são somente essas crises o que o Norte e o Sul têm em comum. Também partilham um regime econômico, o sistema capitalista que domina a totalidade do planeta. Há uns trinta anos se falava de um campo socialista ou comunista; porém, desde então, o bloco soviético -Rússia, os países da Ásia Central, os da Europa do Leste- voltaram a integrar, juntamente com a China e o Vietnam, o sistema capitalista. As quatro crises que acabo de analisar esquematicamente devem ser consideradas diretamente como efeitos do sistema capitalista mundializado (sistema que se originou, historicamente, no Norte).
Quando as coisas vão mal nos países do Norte, sua repercussão é negativa nos países do Sul.
O capitalismo mais pujante é o dos países mais industrializados do Norte. As economias dos Estados Unidos, da Europa e do Japão representam 60% da economia mundial, enquanto que nesses países vivem somente 15% da população mundial, e têm uma superfície bastante reduzida na escala planetária. No entanto, quando as coisas vão mal nos países do Norte, isso se reflete nos países do Sul.
O Sul pagará inevitavelmente os pratos quebrados dessa crise?
Na realidade já está pagando; porém, isso se ampliará ou se apresentará uma oportunidade para proteger-se? Aqui tocamos um ponto importante: o Sul deve e pode perfeitamente proteger-se de alguns efeitos dessas crises. Em relação à crise financeira, é necessário que os países do Sul tomem medidas contra a liberdade de movimento de capitais e, em particular, contra a fuga de capitais para o Norte. Os países do Norte têm uma enorme necessidade de liquidez e as empresas do Norte repatriam um grande volume de capitais a seus países para sanear as contas dos bancos, das companhias de seguros. Para enfrentar essa fuga, os países do Sul devem bloquear esses fluxos e instaurar, como faz a Venezuela desde 2003, um estrito controle sobre os movimentos de capitais e sobre as operações de câmbio de suas moedas. Isso, além de proteger suas moedas, evitaria que sejam vítimas de ataques especulativos.
Os países do Sul não devem seguir o exemplo dos governos dos países europeus e dos Estados Unidos, ou seja, injetar enormes quantidades de dinheiro público para salvar os bancos privados sem tomar o seu controle, presenteando os banqueiros corruptos, os banqueiros ladrões. Os países do Sul devem fazer outra coisa!
1) Instaurar um controle público sobre o setor bancário privado (isto é, estatizá-lo, nacionalizá-lo) e negar-se a colocar dinheiro para salvar banqueiros privados. Colocar dinheiro para proteger a poupança, isso é o que deveriam ter feito os países do Norte; e, por outro lado, recuperar a proteção da poupança e do sistema bancário descontando uma soma equivalente do patrimônio dos grandes acionistas e administradores de bancos. Obviamente, com os grandes acionistas não é necessário limitar-se a tomar o que deixaram em seus bancos, já que em geral, esvaziaram as caixas antes de chamar o Estado para ajudá-los. É necessário, então, estabelecer um cadastro das fortunas dos grandes acionistas em todos os setores da economia e recuperar o valor gerado para salvar o sistema bancário.
2) É necessário também dotar-se de um Banco do Sul para depositar as reservas de câmbio e financiar o desenvolvimento humano dos países do Sul sem ter que continuar pedindo empréstimos aos mercados financeiros do Norte, sem ter que pedir um só dólar ao Banco Mundial e ao FMI ou a outras instituições financeiras completamente controladas pelos países do Norte. Um banco do Sul poderia financiar reformas que não interessam ao capital privado, como, por exemplo, uma reforma agrária ou a aplicação de uma política de soberania alimentar. Poderiam também utilizar o dinheiro público para renovar profundamente as habitações existentes ou para construir novas casas adaptadas às condições de vida das populações interessadas. Isso criaria muito emprego e melhoraria a qualidade de vida. Trata-se de financiar projetos de valem realmente à pena, entre outros, o estabelecimento de uma indústria farmacêutica de medicamentos genéricos.
3) É necessário realizar a auditoria da dívida pública, interna e externa; e declarar soberanamente a nulidade das dívidas ilegítimas, suspendendo seu pagamento. É o momento propício para constituir uma frente dos países do Sul para não pagar a dívida. É também necessário abandonar o Banco Mundial e o FMI.
4) Teríamos muitas coisas a agregar ao que foi dito, como a necessidade e a possibilidade de criar um conjunto de intercâmbio e troca “Sul-Sul”, entre os países do Sul. Pode-se tomar como exemplo possível a África Ocidental. Países como Mali, Níger e Burkina Faso não têm acesso ao mar, nem petróleo; porém, produzem algodão, ouro (Mali) e urânio (Niger). A Nigéria, que tem acesso ao mar, produz petróleo e exporta-o cru aos Estados Unidos ou para a Europa, que, por sua vez, re-exportam derivados refinados para a Nigéria, Mali, Burkina Faso e Niger. Obviamente, seria muito mais atinado fazer intercâmbios entre a Nigéria, que refinaria e transformaria seu próprio petróleo em distintos derivados e Mali, Burkina e Niger que poderiam desenvolver uma indústria têxtil para transformar seu algodão. Seriam intercambiados produtos nigerianos derivados do petróleo por produtos têxteis dessa parte da África Ocidental, sem passar pelo mercado mundial. É absolutamente razoável. O que faz falta é vontade política.
5) É necessário que os dirigentes do Sul, sob pressão popular, rompam com o modelo neoliberal e rompam com o esquema capitalista; porém -e esse é o “xis” da questão- em geral, esses dirigentes estão muito satisfeitos por viver no sistema capitalista e por aceitar as recomendações de Washington e de Bruxelas, do Banco Mundial e do FMI. É necessário que os povos se organizem, livrem-se, caso seja necessário, desses dirigentes e os substituam por mandatários democraticamente eleitos que se comprometam em aplicar um modelo de desenvolvimento adaptado às necessidades da população local. Que utilizem as debilidades dos países e das instituições do Norte, atolados na crise, para aumentar a força dos povos do Sul.