O vilão sou eu?, por Wagner Tiso
Acho que posso dizer, com orgulho, que sou um artista com vínculos pré-históricos com o Partido dos Trabalhadores. Mas nunca ofereci, em sacrifício, a minha independência para pensar. O fato é que na certidão de nascimento do PT consta o meu nome, e nos alicerces de fundação há rastros do meu esforço pessoal para coletar assinaturas de adesão ao partido.
Participei de todas as campanhas presidenciais. Muitas vezes, lá no início, carregava o teclado nas costas para animar os comícios petistas. Nada disso impediu minha convivência com intelectuais e gente do mundo artístico com posições políticas diferentes da minha. Na democracia pela qual me bato há espaço amplo para divergências políticas.
Meu velho coração de estudante palpitou quando Lula ganhou a eleição. Essa jornada para a ascensão do PT ao poder foi longa. Conhecendo os obstáculos históricos e os preconceitos encravados na sociedade brasileira, nem pensei que pudesse estar vivo quando a faixa presidencial fosse cruzada no peito de um operário metalúrgico. Aconteceu antes do que eu esperava. Vivi o bastante para ver.
Assim, era natural a minha presença na casa do ministro Gilberto Gil, no Rio, durante o encontro de intelectuais e artistas com o presidente Lula. Naquela noite recebi uma emocionante e inesperada homenagem do presidente. Havia o calor da amizade e muita sinceridade nas palavras dele quando me agradeceu pela entrevista que dei ao GLOBO, em setembro de 2005. Naquela ocasião, defendi o que acredito e critiquei o que condeno, como foi o caso do uso de caixa dois nas campanhas políticas do partido. A oposição concentrava todas as forças para abalar o governo. Havia um cheiro de golpe branco no ar, denunciado com precisão e coragem pelo professor Wanderley Guilherme dos Santos.
Convidado para aquela entrevista (do ano passado), publicada pelo Globo, defendi um governo no qual acredito. Não vacilei em dizer como via as coisas. Disse o que disse – e repetiria, se preciso fosse – exatamente por acreditar que Lula não rasgou o compromisso com a ética, uma das principais razões pelas quais eu e tantos outros artistas aderimos à causa petista.
Cercado pelos repórteres ao sair do encontro com Lula, eu disse uma frase que, no tumulto, escapou do contexto. Um erro meu e não dos repórteres. Nela vi, posteriormente, que passei a impressão de repudiar a ética. Mas não é assim que penso e ajo, conforme disse em carta publicada pelo jornal O Globo e desconsiderada na seqüência dos acontecimentos. Minha vida, com indissolúvel ligação entre as atitudes pessoais e as ações artísticas, é a expressão do meu compromisso com a seriedade e a lisura. Nada me fará me esquecer de quem sou!
Eu repudiei, sim, a manipulação do discurso sobre a ética, proposta pela oposição. É uma preocupação farisaica. Uma cortina de fumaça que oculta uma disputa implacável pelo poder. Olhem só para a cara dos principais porta-bandeiras do movimento. São vigaristas políticos que enriqueceram na vida pública sem qualquer preocupação com o caos social que vem se formando no Brasil. Eles dão as costas para a população carente e vomitam um discurso hipócrita sobre ética. É isso que repudio. Nesse contexto é que peço que seja inserido meu sentimento real, traído por uma frase mal colocada. A falta de traquejo para enfrentar um batalhão de perguntas – algumas muito agressivas – me fez tropeçar no meu próprio discurso.
Agora vejo a frase como alavanca de um debate no qual faço o papel de vilão. Vilão, eu? Eu que pautei toda a minha vida em atitudes éticas. O pano de fundo é atingir Lula e o PT. Um governo que tem, segundo o Datafolha, 52% de aprovação da sociedade no patamar do “ótimo e bom”.
O Brasil precisa mesmo de um debate sobre ética . Sério e fecundo. Mas, por favor, não a partir da manipulação cruel de uma frase minha.
Quando a fumaça desse momento se esvair, será possível ver em cena os vilões de sempre. Eu me refiro àqueles que, historicamente, saquearam os cofres públicos e trouxeram o país a essa complicada situação de violência e insegurança. Um país, além do mais, marcado mundialmente pela vergonhosa distribuição de renda que desenha o mapa de uma sociedade injusta. Uma injustiça que faz corar aqueles que, de fato, reverenciam a ética.
* Wagner Tiso é músico. Carta divulgada por Tiso e publicada no jornal O Globo em 1/9/2006