Título original: Chaui e Bianchi contra a ficção dos 500 anos

 

“Não adianta mostrar a realidade, pois ela é entendida como ficção.” A frase, dita no filme “Cronicamente Inviável”, de Sérgio Bianchi, também poderia constar do livro Brasil – Mito Fundador e Sociedade Autoritária (Editora Fundação Perseu Abramo), de Marilena Chauí.

O livro e o filme são os eventos culturais recentes (um lançado na Bienal, o outro em cartaz há uma semana) que de modo mais contundente retrataram a realidade brasileira. São o negativo da imagem de que a cultura oficial se vale para justificar as comemorações dos 500 anos, já que ambos tratam de demolir esse Brasil “dom de Deus e da Natureza”, de povo pacífico, ordeiro, alegre e sensual, onde o sincretismo impede o preconceito. Esse Brasil onde os contrastes regionais ressaltam a pluralidade cultural e onde em se plantando tudo dá.

As origens desse imaginário de “Aquarela do Brasil”, Chauí identifica no “mito fundador”, cuja gênese remonta à chegada de Cabral. Parêntese: não é à toa o emprego da expressão “mito”. No texto da filósofa, ele está presente em suas três acepções: a etimológica, como narração pública de feitos lendários da comunidade. A antropológica, como solução imaginária para conflitos que não encontram solução no plano do real. E a psicanalítica, como impulso à repetição de algo imaginário que bloqueia a percepção da realidade e impede que se lide com ela.

É em todos esses sentidos que, segundo o argumento de Chauí, o mito de um Brasil idílico foi se arraigando no inconsciente do país ao longo dos séculos para tornar possível um projeto nacional arcaico e mascarar a realidade que a ele subjaz: a da iniqüidade e da opressão. Ou seja, por baixo da retórica, existe uma sociedade em que as relações sociais se dão sempre entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. “O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade”, escreve ela.

A bloquear a percepção de nossa própria truculência, estaria a ilusão de fazermos parte de uma nação una e indivisa, ligada por identidades e interesses comuns. Somado ao hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que diz respeito apenas ao estado, o fato ajuda a ignorarmos que “é a sociedade brasileira que é autoritária, e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.”

Ora, é justamente isso que vemos no filme de Sérgio Bianchi. Ali o opressor somos todos. A mulher de classe-média que dá presentes às crianças de rua para aliviar sua culpa social. O dono do restaurante que transa com seus garçons. A gerente de infância pobre que posa de grã-fina e coordena uma rede de tráfico de órgãos. E até o professor, cuja visão crítica do país serve de narração ao filme, mas que ao fim se mostra “avião” dessa mesma rede porque “escrever livro não enche o bolso de ninguém.”

O mito da alegria do brasileiro, cuja expressão máxima seria o carnaval da Bahia, é retratado como um sinônimo excludente de felicidade compulsória para sustentar a miséria. O mito do “gigante pela própria natureza” se esfuma com as queimadas na Amazônia. E o da cordialidade, nos cassetetes da polícia que espancam índios (sim, Bianchi foi profético).

Assim, o que no livro de Marilena Chauí é sustentado com equilíbrio, erudição e clareza expositiva, no filme aparece como chiste, niilismo e a intensidade visual de um iconoclasta. É certo que, na visão de Bianchi, mesmo os oprimidos são vistos sem idealismo (há ironia sobre o modo de organização dos sem-terra e a empregada doméstica dorme com o namorado, que a espanca, na cama da patroa). Mas não há dúvidas de que ambos nos dão a ver uma realidade com a qual insistimos em lidar como se fosse ficção.

Publicado na Folha de São Paulo.

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